sábado, 28 de junho de 2008

CASAMENTO IN EXTREMIS VITAE MOMENTIS

CASAMENTO IN EXTREMIS VITAE MOMENTIS

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988, elenca, não são númerus clausus, mas exemplificativos, em seu artigo 226: a Família formada pelo Casamento, a União Estável e a Família Monoparental.
Essas espécies do gênero entidade familiar encontram-se em condições de igualdade, mesmo levando-se em consideração o tratamento privilegiado que o atual sistema jurídico atribuiu ao casamento.

Ressalta-se por oportuno, que o Código Civil de 2002 conferiu onze capítulos e setenta e nova artigos ao instituto do casamento. Por outra via, a União Estável, apenas para exemplificar, está descrita em somente quatro artigos e ainda, com menor referencia, a Família Monoparental não obteve por parte do legislador qualquer regulamentação no diploma civil.

É necessária a presença do Estado no ato celebrativo e solene do casamento, por sua natureza jurídica contratual, uma vez disciplinado por norma de ordem pública imperativa, que em hipótese alguma, pode ser afastada por vontade das partes, exigindo assim, formalidade especifica para sua efetivação.

Nesse sentido e para que o casamento civil seja celebrado deve atender certas condições como:

a) - documentação – na forma dos arts. 1.525 a 1.526 do Código Civil;
b - publicação dos Proclamas - art. 1.527;
c – manifestação quanto a impedimentos ou casas suspensiva - arts. 1.528 a 1.530;
d - certidão do Oficial do Registro - art. 1.531.

Dentre as modalidades de casamento, o código Civil enumera o nuncupativo, constituindo uma exceção por dispensar algumas formalidades, dentre elas: o processo de habilitação, a publicação dos proclamas e a própria presença da autoridade celebrante.

Esta é uma modalidade especial de casamento, celebrado em circunstancia emergencial, em face de um dos nubentes apresentar iminente risco de vida.

Para sua realização fica dispensado o uso de procuração para que o nubente doente se faça representar no ato, e por sua vez, ele próprio convoca seis testemunhas e efetiva a manifestação de vontade pela palavra falada.

Por sua vez, as testemunhas convocadas não podem apresentar parentesco em linha reta, esta quer ascendente ou descendente é ab infinitum, ou em linha colateral, até o segundo grau, isto para evitar a possibilidade de oportunismo ante ao estado de saúde do nubente.

Observa-se que no casamento in articulo mortis o formalismo cede lugar à pratica imediata, a fim de atender situação de emergência, que não admite tempo de espera.


SENTENÇA

Processo nº. 881/2008
Requerente: D. P
Ação: Casamento Nuncupativo


Vistos etc.


Trata-se de ação Homologatória de Casamento Nuncupativo promovida por D.P., qualificada na inicial, sob a alegação de ter contraído matrimônio com B. B., quando este se encontrava em iminente risco de vida.

Aduz a autora que o casamento ocorreu em 24 de dezembro de 2007, na presença de seis testemunhas, durante o período de internação do nubente no Hospital Aldenora Belo, onde veio a falecer em 1º de janeiro de 2008.

Informa que o casal já havia dado entrada ao processo de habilitação para o casamento, constando inclusive publicação do edital de proclamas (fl. 25), restando apenas ser designada a data para celebração do ato, o que não ocorreu devido às festas de fim de ano.

Instruíram a inicial os documentos de fls. 06/11 e 13/25.

Designada audiência, nela foram ouvidas a autora, além das testemunhas arroladas na peça inaugural (fls. 37/38).

Instada a manifestar-se, a representante do Ministério Público opinou pela procedência do pedido, conforme parecer de fls. 40.


Eis o relatório. Decido.

Como se depreende dos autos, pretende a autora ver homologado o casamento nuncupativo contraído com B., o qual, embora lúcido, encontrava-se doente em estado grave.

A pretensão da autora tem respaldo no art. 1.540[1] do Código Civil e atende perfeitamente os requisitos do art. 1.541 do mesmo diploma legal, cujo teor a seguir se traslada:

Art. 1.541. Realizado o casamento, devem as testemunhas comparecer perante a autoridade judicial mais próxima, dentro em dez dias, pedindo que lhes tome por termo a declaração de:

I - que foram convocadas por parte do enfermo;
II - que este parecia em perigo de vida, mas em seu juízo;
III - que, em sua presença, declararam os contraentes, livre e espontaneamente, receber-se por marido e mulher.
[...]

Observe-se, ainda, que o pedido foi proposto dentro do prazo previsto pelo artigo supra citado, uma vez que o registro de distribuição data de 16/04/2008.

Assim, percebe-se que o Código Civil abre exceções quanto às formalidades para a validade do casamento, sendo uma delas o iminente risco de vida em que se encontra um dos nubentes.

Autorizada, pois, a dispensa do processo de habilitação e até a presença do celebrante em razão da urgência que o caso requer.

Por ocasião da audiência, afirmou a requerente que conviveu com B por um período de seis anos e que o casamento só não ocorreu devido ao prazo exigido para a publicação do edital, pois nesse ínterim ocorreu o agravamento do estado de saúde do nubente.

Contudo, compulsando os autos, verifica-se que foi juntado ao processo de habilitação atestado médico sobre a sanidade mental do nubente, o qual, não obstante a gravidade de sua doença, revelou encontrar-se o mesmo em “perfeitas faculdades mentais”, inclusive com menção à finalidade do paciente, qual seja anexar o referido atestado ao processo de habilitação.

Com efeito, as seis testemunhas inquiridas em audiência própria afirmaram, unissonamente, que o casal vivia junto há seis anos, não possuíam impedimento para casar e que, por livre e espontânea vontade, desejavam contrair matrimônio.


Eis alguns trechos que merecem destaque:

“[...] que tem conhecimento que a requerente e seu companheiro B conviveram por um período de seis anos; que a requerente era solteira; que B era solteiro;[...] que a requerente e B já estavam se preparando para casar; que quando visitou B no Hospital Aldenora Belo, manifestou a vontade de casar com a requerente” (R. M., fl. 37)

“[...] que não é parente da requerente e de B; que tem conhecimento de que B já tinha dado entrada nos documentos para casar; que a entrada nos papéis de casamento foi antes de B ficar hospitalizado; que B masnifestou ao depoente várias vezes a vontade de casar” (J. A, fl. 37)

“que não é parente da requerente e de B; que a requerente e B conviveram por quase sete anos; que não tiveram filhos; que tem informação de que B e a requerente já haviam providenciado os papéis para casarem” (F. H., fl. 38)

Cumpre ressaltar que todas as testemunhas arroladas e inquiridas não possuíam qualquer grau de parentesco em linha reta ou na colateral até o segundo grau, em respeito ao disposto no art. 1.540 do CC.

De se notar, ainda, que o processo de habilitação para o casamento já estava em vias de concretização, conforme se vê da documentação acostada aos autos.

O Ministério Público, atuando como custus legis, manifestou-se favorável à homologação do casamento nuncupativo, “considerando que o presente feito atende aos requisitos dispostos no art. 1.540 e 1.541 do CC” (Parecer Ministerial de fl. 40).

Posto isso, com espeque nos dispositivos legais acima mencionados e em conformidade com o entendimento ministerial, homologo o matrimônio contraído por D e B, para que surta seus jurídicos e legais efeitos, devendo, para tanto, serem feitas as anotações e averbações e, após o trânsito em julgado, oficie-se ao Cartório de Registro Civil competente para que proceda ao devido registro.

Sem custas face ao pedido de Assistência Judiciária que ora defiro.

Publique-se. Registre-se. Intime-se.

Ciência ao Ministério Público.

São Luís, 26 de junho de 2008.

José de Ribamar Castro
Juiz de Direito
1ª Vara de Família


[1] Art. 1.540. Quando algum dos contraentes estiver em iminente risco de vida, não obtendo a presença da autoridade à qual incumba presidir o ato, nem a de seu substituto, poderá o casamento ser celebrado na presença de seis testemunhas, que com os nubentes não tenham parentesco em linha reta, ou, na colateral, até segundo grau.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

União Homoafetiva

Processo n.º 0000/2008
Requerente: M. S
Requerida: N.G.
Ação de dissolução de sociedade homoafetiva


Vistos etc.


Cuida-se de ação de dissolução de sociedade homoafetiva c/c partilha de bens, promovida por M. S., através de advogado constituído, contra N. G. devidamente qualificadas nos autos.

Aduz a requerente que manteve um relacionamento homoafetivo com a requerida por um período de dezoito anos, durante o qual compartilharam o mesmo lar e construíram patrimônio em comum, formado pela casa e pelos móveis que a guarnecem.

Relata, porém, que a requerida iniciou outra relação amorosa, fato que não foi bem aceito pela autora e que tornou insuportável a continuidade da união.

Inconformada pela traição e, diante das várias agressões físicas e morais, a requerente relata que foi obrigada a deixar a residência, separando-se de fato da requerida.

Pugnou, por fim, pelo reconhecimento e dissolução da sociedade e, consequentemente, pela partilha igualitária dos bens adquiridos durante a união.

Distribuídos, inicialmente, à 6ª Vara Cível, foram os autos remetidos a este Juízo em decorrência da competência para o processamento e julgamento do feito.

Com vista dos autos, a representante do Ministério Público opinou pelo retorno dos autos à vara de origem, o que foi corroborado por outro parecer de fls. 50 – v.

Através da decisão de fls. 52, foi decidida a controvérsia acerca da competência do feito e determinada, via de conseqüência, a permanência dos autos nesta Vara de Família.

Audiência de conciliação às fls. 66, na qual não houve acordo.

Contestação às fls. 71/82 e réplica às fls. 89/92.

Suspensa a audiência de instrução e julgamento, para análise das preliminares argüidas, foram estas rejeitas, conforme decisão de fls. 105/106.

A requerente informou, através da petição de fls. 111, que a requerida vendeu a casa, um dos objetos do litígio.

Audiência de instrução e julgamento às fls. 119/122, na qual foram ouvidas as testemunhas arroladas pelas partes.

Alegações finais da autora às fls. 126/130 e da requerida às fls. 132/137.

Instada a se manifestar, a representante do Ministério Público opinou pela partilha do bem, mas levando em consideração a existência de uma sociedade de fato, conforme parecer de fls. 134/145.


É o relatório. Decido.


Ousadas são as decisões que envolvem direitos de homossexuais, muito embora já sejam, há algum tempo, alvo de variadas jurisprudências, que reconhecem direitos e geram, via de conseqüência, grandes questionamentos e debates em todas as esferas do Direito.

De fato, tem se tornado comum o entendimento de que é inadmissível a análise de questões - sejam ou não de direito de família – baseadas exclusivamente no comportamento sexual de determinada pessoa, como se a aplicação de normas e princípios fosse algo pessoal.

Assim, a orientação sexual de qualquer cidadão, vista como sua expressão máxima de liberdade individual, tem sido respeitada e resguardada em muitos julgados, fato que tem sido comemorado dentre aqueles que defendem, acima de tudo, a dignidade da pessoa humana.

Com efeito, parece óbvio que um Estado que se intitula democrático de direito tenha por obrigação o respeito a seus princípios, devendo a Constituição Federal tutelar as garantias, direitos e liberdades fundamentais, especialmente quando não se há sequer regulamentação legal.


Por esta razão, a normatização dos vínculos afetivos homossexuais, com a respectiva atribuição de direitos e a definição de obrigações, é medida que urge, revelando-se imprescindível o papel do legislativo, uma vez que preenche o espaço da indefinição dos valores e vincula o julgador quando do exame dos casos concretos, retirando a subjetividade das decisões preconceituosas e arbitrárias.

Entrementes, embora a Constituição Federal identifique como objetivo principal da república a promoção do bem de todos sem preconceitos de sexo[1], não há qualquer referência quanto à orientação sexual, quer permissiva, quer proibitória.

Não é também dirigida à orientação sexual a proibição que é direcionada à discriminação de salário e exercício de funções em razão do sexo[2], pelo que ficam os homossexuais desprovidos de proteção constitucional que, em regra, é a todos deferida.

Mas não se pode só se lamentar. Os operadores do direito devem, sob pena de afronta ao princípio da inafastabilidade[3], pronunciarem-se a respeito, invocando-se princípios constitucionais que impõem respeito à dignidade, à liberdade e à igualdade.

Ademais, é inconcebível que orientação sexual das partes leve o magistrado a deixar de decidir, sonegar jurisdição, como se com isso o fato fosse simplesmente desaparecer.

Guimarães[4] sustenta que:

Infelizmente se vive numa sociedade que estigmatiza e ridiculariza as pessoas que exercem uma orientação sexual diferente. [...] Não é negando direitos à união homossexual que vamos fazer desaparecer o homossexualismo. Os fundamentos destas uniões são assemelhados aos do casamento ou da união estável. O vínculo que os une, à semelhança dos demais casais, é o afeto, que gera efeitos jurídicos.

Note-se que, a despeito do reconhecimento das uniões já ter ocorrido em outros países[5] está, até hoje, afastado da realidade constitucional brasileira, o que não impediu, porém, o surgimento de normas infraconstitucionais[6] esparsas, bem como de outros direitos que já estão sendo assegurados.

Deste modo, pôde-se perceber que o foco deixou de ser unicamente a norma positivada e passou a ser o próprio ser humano, desta vez, analisado sob o aspecto da dignidade. É o que Dias[7] chama de harmonia do Estado Democrático de Direito com os anseios do cidadão no qual:

[...] o resultado não poderia ser outro senão a contaminação dos cânones constitucionais não só no direito legislado, mas também nas situações em que a falta de legislação levava ao não reconhecimento de direitos.

Em qualquer caso, o que não se pode é negar direitos, nem dar tratamento diferenciado sob a justificativa de que não há regra jurídica. Ainda que a lei seja omissa, deve-se fazer uso da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito[8], através dos quais se busca atender ao fim social e às exigências do bem comum.

Assim, a limitação, quer constitucional, quer legal, não tem o condão de deixar à margem de proteção jurisdicional os relacionamentos homossexuais, de modo que há de aplicar à esta união a mesma disciplina jurídica do caso semelhante, que foi devidamente regulamentado.


Este é o conceito de analogia, para a qual há a necessidade de haver, entre a norma positivada e a não contemplada, certa identidade na essência ou nos fatos que levaram o legislador a elaborar o dispositivo que estabeleceu a situação beneficiada.

In casu, a depender do entendimento acolhido, dois são os institutos jurídicos usualmente utilizados como paradigma, os quais buscam, cada um a seu modo, definir o regime jurídico advindo de uma relação homoafetiva.

Justamente em virtude da duplicidade de entendimento, muito se discutiu nesse processo sobre qual dos institutos seria capaz de melhor traduzir a natureza jurídica da mencionada relação e, via de conseqüência, qual o juízo competente para seu processamento e julgamento.

Nunca foi sustentado, porém, que uma relação familiar – independente de sua formação ou do nome que leva – vale, em primeiro lugar, pelo vínculo afetivo que forma e, em segundo, pelas conseqüências que geram, resguardando direitos daqueles que dela participam.

É que muitos, estranhamente, ainda não estão habituados com as novas perspectivas do direito de família, o que torna até compreensível que a interpretação das normas e princípios respectivos, seja, em geral, de lenta maturação.

Pois bem. O primeiro dos institutos é a sociedade de fato. Em análise dos autos, verificou-se que não há qualquer possibilidade de se conferir natureza jurídica de sociedade de fato (art. 981 CC)[9] à presente relação.

Referida sociedade vislumbra apenas um vínculo negocial, como se o objetivo do “contrato da sociedade” fosse uma obrigação de bens e de serviços para o exercício de uma atividade econômica e não uma relação afetiva com características de uma família, como se observou no caso em análise.

Note-se que a própria autora, talvez em atenção ao tratamento discriminatório que vem sendo dado aos homossexuais, conferiu ao seu pedido inicial natureza negocial, como se relacionamentos amorosos fosse prerrogativa exclusiva de casais heterossexuais.

Porém, ao relatar os fatos, a suplicante, em nenhum momento, empregou natureza comercial ao seu relacionamento, mas ao contrário, fez questão de frisar a forte relação afetiva vivida entre ambas.

De fato, foram efetivamente vislumbradas, através dos depoimentos das testemunhas e demais provas carreadas aos autos, características típicas de uma entidade familiar, tais como residência em comum e convivência pública e duradoura, fatos que a distanciam da analogia preconceituosa que usualmente é feita com a sociedade de fato.

Nesses casos, haja vista sua inclusão no âmbito no direito obrigacional, a conseqüência é a negativa de direitos, alguns exclusivos do Direito de Família (como alimentos e partilha) e outros próprios do Direito Sucessório (como direito real de habitação, herança e usufruto sobre a metade dos bens disponíveis).

Dessa forma, chegar-se-ia à esdrúxula situação na qual:

[...] a depender da identidade ou da diversidade sexual dos parceiros, diferenciada é a tutela jurisdicional que lhes será outorgada. Buscado o judiciário para o reconhecimento dos efeitos decorrente da união, certamente diversas serão as soluções de ordem pessoal e patrimonial se for o par do mesmo ou de distinto sexo. (DIAS[10]).

Desta forma, caso se considere uma entidade homoafetiva apenas como sociedade de fato, apesar de idênticos os comportamentos dos conviventes e a natureza afetiva do vinculo que os une, cada qual receberá tratamento diferenciado do Judiciário, o que afronta claramente o princípio da igualdade.

Por outro lado, verifica-se que a união homoafetiva se amolda claramente ao instituto da união estável, o segundo dos paradigmas elencados.

Prevista nos artigos 226, §3º da Constituição Federal[11] e 1.723 do Código Civil[12], a união estável em nada se diferencia, a exceção da relação homem-mulher, das uniões homoafetiva, desde que caracterizados os requisitos da publicidade, durabilidade, continuidade e intuito de formação de entidade familiar.
Induvidosamente, a semelhança relevante de ambos os relacionamentos é o afeto informal. Os dois institutos centram-se em relações interpessoais de amor comum entre os parceiros.

Esse é o entendimento de Giorgis[13]:

É que o amor e o afeto independem de sexo, cor ou raça, sendo preciso que se enfrente o problema, deixando de fazer vistas grossas a uma realidade que bate à porta da hodiernidade, e mesmo que a situação não se enquadre nos moldes da relação estável padronizada, não se abdica à união homossexual os mesmos efeitos dela.

No caso, temos um conjunto de normas (princípios constitucionais explícitos mais a lei da União Estável) das quais é perfeitamente possível a extração de elementos que possibilitem sua aplicabilidade ao caso não previsto, mas similar.

E malgrado haja o entendimento de que a redação constante nos dispositivos acima mencionados - cujo conteúdo faz referência expressa aos sujeitos da relação (homem e mulher) - seria óbice à aplicação do regime jurídico próprio da união estável, há que se relembrar que os princípios constitucionais, quando em confronto com as normas, devem prevalecer sobre estas, eis que fontes primeiras do Direito.
Assim, os homossexuais, quando em situações análogas, merecem a mesma proteção conferida aos heterossexuais, uma vez que também são merecedores da tutela concedida pelo princípio da dignidade da pessoa humana, bem como têm direito de ser aquilo que desejam ser, com a devida proteção da ordem jurídica.

Não há que se reconhecer como menor uma relação entre duas pessoas, só porque de mesmo sexo, levando-se em conta o paradigma das relações heterossexuais. Ainda que a corrente seja a da heterossexualidade, o paradigma aqui deve ser o do gênero humano, em atenção à tolerância e ao respeito à diferença e à diversidade comportamental.

Pertinente o entendimento do Des. Luiz Ari Azambuja Ramos:

[...] Pouco importa se hetero ou homoafetiva é a relação. Importa que seja a troca ou o compartilhamento de afeto, de sentimento, de carinho e de ternura entre duas pessoas humanas. Importa que siga os elementos da união estável, mas que seus sujeitos sejam não somente o homem e a mulher, como também o homem e o homem e a mulher e a mulher. Negar-lhes esse direito é desprezar sua natureza humana e limitar a pessoa que são. (Ap. Cível n. 70021085691 TJRS).

Deste modo, quer em respeito à dignidade da pessoa humana, quer pela necessidade de obedecer-se ao princípio da liberdade e da igualdade, devem as uniões homoafetivas ser inseridas no âmbito de proteção como entidade familiar.

Outro não é o entendimento jurisprudencial pátrio, senão veja-se:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. SEPARAÇÃO DE FATO DO CONVIVENTE CASADO. PARTILHA DE BENS. ALIMENTOS. União homossexual: lacuna do Direito. O ordenamento jurídico brasileiro não disciplina expressamente a respeito da relação afetiva estável entre pessoas do mesmo sexo. Da mesma forma, a lei brasileira não proíbe a relação entre duas pessoas do mesmo sexo. Logo, está-se diante de lacuna do direito. Na colmatação da lacuna, cumpre recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito, em cumprimento ao art. 126 do CPC e art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. Na busca da melhor analogia, o instituto jurídico, não é a sociedade de fato. A melhor analogia, no caso, é a com a união estável. O par homossexual não se une por razões econômicas. Tanto nos companheiros heterossexuais como no par homossexual se encontra, como dado fundamental da união, uma relação que se funda no amor, sendo ambas relações de índole emotiva, sentimental e afetiva. Na aplicação dos princípios gerais do direito a uniões homossexuais se vê protegida, pelo primado da dignidade da pessoa humana e do direito de cada um exercer com plenitude aquilo que é próprio de sua condição. Somente dessa forma se cumprirá à risca, o comando constitucional da não discriminação por sexo. A análise dos costumes não pode discrepar do projeto de uma sociedade que se pretende democrática, pluralista e que repudia a intolerância e o preconceito. [...] Reconhecimento de que a união de pessoas do mesmo sexo gera as mesmas conseqüências previstas na união estável. Negar esse direito às pessoas por causa da condição e orientação homossexual é limitar em dignidade a pessoa que são. A união homossexual no caso concreto. Uma vez presentes os pressupostos constitutivos da união estável (art. 1.723 do CC) [...] de rigor o reconhecimento da união estável homossexual, em face dos princípios constitucionais vigentes, centrados na valorização do ser humano. Via de conseqüência, as repercussões jurídicas, verificadas na união homossexual, tal como a partilha dos bens, em face do princípio da isonomia, são as mesmas que decorrem da união heterossexual. DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO APELO. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70021637145, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 13/12/2007).

Por certo, ao menos até que o legislador regulamente as uniões homossexuais, incumbe ao judiciário emprestar-lhe juridicidade e assegurarem-se os mesmos direitos que merecem as demais relações afetivas, notadamente os patrimoniais.

Assim, analisado qual o paradigma a ser utilizado, há que se verificar se o caso em comento coaduna-se efetivamente ao modelo previsto para união estável.

Senão vejamos:

Restou notória a convivência pública do relacionamento, que além de confirmado pela requerida, foi corroborado pelas testemunhas, que ratificaram a inicial e confirmaram que ambas empreendiam esforços para manutenção de vida em comum e para a realização de um projeto de vida a dois.

Eis os excertos que merecem destaque:

Que conviveu com a requerente por um período de dez anos com a requerente, que a convivência era “marital” [...]. Que antes de se mudarem para a Cidade operária moravam em um quarto alugado, no Canto da Fabril. (Requerida, fls. 119).

Que tem conhecimento que a requerente e a requerida conviveram em situação “marital”; que o relacionamento foi de mais de quinze anos; que a casa da cidade operária foi ocupada pelas partes. (S. M, fls. 120).

Que tem conhecimento que a requerente e a requerida conviveram num período de dezoito anos; que o relacionamento [...] era como se fosse “marital”; (F. P., fls. 121).

Outrossim, verificou-se também mútuo consenso para permanência da união, consubstanciado na livre formação da vida em comum, que perdurou, por no mínimo dez anos, conforme consta dos autos.

Restaram ainda configurados os requisitos da unicidade de vínculo e da estabilidade, uma vez que se constatou que além de duradoura e sólida (não efêmera, portanto), a união entre as conviventes era a única, haja vista o compromisso com o caráter monogâmico da relação, que só se desfez, quando da saída da requerente da residência do casal.

Também ficaram comprovados os requisitos da continuidade, haja vista que não foram verificados afastamentos temporários, permanecendo a união ao longo de todo o período convivido e, o do objetivo de constituição de família, o qual implica no elemento anímico e consciente no propósito de formação de entidade familiar, evidenciado pela longa duração da união.

Com efeito, se as partes passaram a ter uma vida em comum, cumprindo os deveres de assistência mútua e com o objetivo de construírem um lar, esse vínculo, independentemente do sexo do casal, gerou direitos e obrigações, típicos de qualquer entidade familiar, não comportando qualquer julgamento do magistrado no que toca às opções de vida das partes.

Por outro lado, no que refere à partilha do bem do casal, verifica-se que ficou comprovado, inclusive através do depoimento da requerida (fls. 119), que este foi adquirido na vigência da união, uma vez que as partes passaram a residir juntas e na mesma época na casa objeto do litígio, sendo forçoso o deferimento da partilha.

E não há que se mensurar se houve ou não esforço mútuo, eis que, em se tratando de situação análoga à união estável, a colaboração se presume, levando-se em conta que o bem foi adquirido durante a união, momento em que ambos os conviventes, seja ou não financeiramente, despenderam esforços para aquisição e conservação do bem, não havendo que se falar da aplicação da súmula 380 do STF[14].

A jurisprudência não é pacífica, mas já há significativos julgados, senão vejamos:

UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. MEAÇÃO. PARADIGMA. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de união entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividades retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do Direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humanidade e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento dever ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação provida em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros. (TJRGS – AC 70001388982- 7º c. Cível, Rel. José Carlos T. Giorgis – j. 1/03/2000).

AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO CUMULADA COM PARTILHA. DEMANDA JULGADA PROCEDENTE. RECURSO IMPROVIDO. Aplicando-se analogicamente a Lei 9. 278/96, a recorrente e sua companheira tem direito assegurado de partilhar os bens adquiridos durante a convivência, ainda que tratando-se de pessoas do mesmo sexo, desde que dissolvida a união estável. [...] ( TJBA – AC 16313-9/99 – 3ª C.Cível – Rel. Des. Mário Albiano – j. 4/4/2001).

Deste modo, o imóvel pertence a ambas, em consonância ao que dispõe o artigo art. 5° da Lei 9278/96[15] e, haja vista que este já foi vendido pelo valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), conforme consta do documento de fls. 123, a requerida deverá pagar a importância referente à metade do valor da venda do imóvel.

Do exposto, julgo procedente o pedido para declarar e desconstituir a união homoafetiva existente entre M. S. e N. G. e o faço, por analogia, com fulcro nos artigos 1º, III c/c art. 3º, IV, art. 5º, caput da Constituição Federal, além do artigo 5º da Lei 9478/96, devendo para tanto a requerida, partilhar igualmente o valor referente ao imóvel pertencente a ambas.

Sem custas face ao pedido de assistência judiciária que ora defiro.

Após o trânsito em julgado, arquive-se com as anotações de praxe.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

São Luís, 09 de junho de 2008.

José de Ribamar Castro
Juiz de Direito
1ª Vara de Família
[1] Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
[2] Art. 7º. [...].
XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil;
[3] Art. 5º. [...] XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
[4] GUIMARÃES. Marilene Silveira. Homossexualidade: discussões jurídicas e psicológicas. Curitiba: Juruá, 2001, p. 104.
[5]Nos países da Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos (alguns estados), Portugal e outros a parceria homossexual já é reconhecida legalmente e, em alguns deles, já há inclusive a permissão de registro civil da união. (DIAS, p. 46/47).
[6] Os Estados de Alagoas e Pará promoveram emenda às respectivas constituições vedando discriminação por orientação sexual. Também os Estados de São Paulo (Lei n. 10.948/2001), Minas Gerais (Lei n. 14.170/2002), Rio de Janeiro (Lei n. 3.406/2002), Piauí (Lei n. 5.431/2004), Santa Catarina (Lei n. 12.574/2002), Rio Grande do Sul (Lei n. 11872/2002), Distrito Federal (Lei n. 2.615/2000) e Bahia (Lei n. 5.275/1997) editaram leis estabelecendo punições e penalidades a atitudes discriminatórias em virtude de orientação sexual.
[7] DIAS. Maria Berenice. União Homossexual: o preconceito e a justiça. 3 ed. Ver. Atual. Porto alegre: Livraria do Advogado Ed., 2006, p. 17.
[8] Art. 126 CPC. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.
Art. 4º. LICC. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
[9] Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.
[10] Ob. cit. p. 89.
[11] Art. 226. [...]
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
[12] Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
[13] GIORGIS, José Carlos Teixeira. A relação homoerótica e a partilha de bens - Homossexualidade – Discussões Jurídicas e Psicológicas - Instituto Interdisciplinar de Direito de Família - IDEF, Editora Juruá, Curitiba/PR, 2001.

[14] Súmula 380 STF. Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.
[15] Art. 5°. Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação em contrato escrito.
XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
Sessão do dia 18 de dezembro de 2008.
APELAÇÃO CÍVEL N.º 00000/2008 – SÃO LUÍS
Apelante: N. G.
Advogado:
Apelada: M. S.
Advogado:
Relator: Des. Cleones Carvalho Cunha
Revisora: Desª Nelma Sarney Costa


ACÓRDÃO N.º 78.417/2008


E M E N TA

CONSTITUCIONAL. CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO. RELAÇÃO HOMOAFETIVA. DIREITO DE FAMÍLIA. APLICAÇÃO. UNIÃO ESTÁVEL. EQUIVALÊNCIA. PRECEDENTES DO STJ. COMPETÊNCIA. VARA DE FAMÍLIA. PARTILHA IGUALITÁRIA DOS BENS ADQUIRIDOS DURANTE A CONVIVÊNCIA. ARTS. 1º E 5º DA LEI Nº 9278/96. NÃO PROVIMENTO.

I – O STJ, recentemente, através da 4ª Turma, decidiu que a ação que busca a declaração de união estável na relação homoafetiva deve ser analisada à luz do Direito de Família, sendo competentes, portanto, as Varas de Família para processo e julgamento do feito;

II – equiparando-se tal relação homoafetiva à união estável, nos termos do art. 1º da Lei nº 9278/96, deve ser mantida incólume a sentença que, à luz do art. 5º da referida lei, dissolveu a união e determinou a partilha igualitária dos bens;

III – apelação não provida.

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Desembargadores da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, unanimemente e de acordo com o parecer da Procuradoria Geral de Justiça, em negarem provimento ao apelo, nos termos do voto do Desembargador Relator.

Participaram do julgamento os Senhores Desembargadores Cleones Carvalho Cunha, Nelma Sarney Costa e Cleonice Silva Freire.

Funcionou pela Procuradoria Geral de Justiça a Drª Ana Lídia de Mello e Silva Moraes.

São Luís, 18 de dezembro de 2008.

Desembargadora CLEONICE SILVA FREIRE
PRESIDENTE

Desembargador CLEONES CARVALHO CUNHA
RELATOR

R E L A T Ó R I O

Adoto como relatório aquele constante do parecer da Douta Procuradoria Geral de Justiça de fls. 199/207, o qual passo a transcrever, ipsis litteris:

Cuida-se de Apelação Cível interposta por N. G. contra sentença (fls. 145/162) proferida pelo Juiz de Direito da Primeira Vara de Família da Capital, que, nos autos de Ação de dissolução de sociedade de fato c/c partilha de bens (processo n.º 8729/2004), julgou procedente o pedido de M. S. declarando e desconstituindo união homoafetiva existente entre as partes e condenado N. G. a partilhar igualitariamente o valor referente à venda de imóvel pertencente a ambas. Sem custas judiciais face concessão da assistência judiciária gratuita.
Em exordial de fls. 04/22, aduziu M. S. que manteve um relacionamento homoafetivo com N. G. por um período de 18 (dezoito) anos, durante o qual compartilharam o mesmo lar e construíram patrimônio em comum, composto por um bem imóvel e pelos bens móveis que lhes guarneciam. Relatou, ainda, que N. G. iniciou outra relação amorosa, o que tornou insuportável a continuidade da convivência. Diante da situação fática, M. S. expôs que foi obrigada a deixar a residência e separar-se de fato de N. G.

Por tais razões, pugnou pelo reconhecimento e pela dissolução da sociedade e, consequentemente, pela partilha equitativa dos bens adquiridos durante a relação.

Juntou documentos de fls. 23/33.

Juiz de Direito da Sexta Vara Cível, em despacho de fl. 34, declinou da competência remetendo os autos para cartório de distribuição. Foram os autos remetidos à Primeira Vara de Família.

O representante do Ministério Pública, em duas manifestações de fls. 41/43 e 137/143, opinou pelo retorno dos autos à Vara de origem.

Em despacho de fls. 52/54, o juízo a quo decidiu acerca da competência para processamento e julgamento da ação, determinando a permanência dos autos na Primeira Vara de Família.

Em contestação de fls. 71/82, N. G. requereu procedência das preliminares de nulidade absoluta e de incompetência de juízo em razão da matéria, bem como requereu, no mérito, a improcedência total dos pedidos formulados na petição inicial.

Na réplica de fls. 87/90, M. S. requereu a impugnação das preliminares argüidas na contestação e reiterou os pedidos da inicial.
Suspensa a audiência de instrução e julgamento, fl. 101, para análise das preliminares de nulidade absoluta do processo e incompetência do juízo em razão da matéria argüida por N. G., sendo estas rejeitadas, conforme decisão de fls. 103/104.

M. S., à fl. 109, informou que N. G. havia vendido o imóvel, objeto do litígio.

Alegações finais apresentadas por M. S., fls. 124/128, onde reiterou os termos da inicial.

Alegações finais apresentadas por N. G., fls. 130/135, onde reiterou os termos da contestação.

O Juiz de Direito da Primeira Vara de Família da Capital, prolatou sentença (fls. 145/162), na qual julgou procedente o pedido de M. S. declarando e desconstituindo união homoafetiva existente entre as partes e condenando N. G., a partilhar igualitariamente o valor referente à venda de imóvel pertencente a ambas.

N. G. interpôs Recurso de Apelação, fls. 166/172, no qual requereu em suas razões recursais a anulação da sentença guerreada, com a conseqüente remessa dos autos a uma das Varas Cíveis da Capital, e a concessão dos benefícios da assistência judiciária gratuita.

M. S. ofertou suas contra-razões, fls. 179/190, pugnando pela manutenção in totum da sentença recorrida e pelo indeferimento do pedido de assistência judiciária gratuita.


A Procuradoria Geral de Justiça, em parecer da lavra da Drª Sâmara Ascar Sauáia, manifestou-se pelo não provimento do presente apelo, mantendo incólume a sentença recorrida.

É o relatório.


V O T O

Presentes os requisitos de admissibilidade recursal (fl. 192), conheço do apelo.

Consoante acima relatado, visa o presente recurso à reforma da sentença de fls. 145/162, proferida pelo MM. Juiz da 1ª Vara de Família da Capital que, nos autos da Ação de Dissolução de Sociedade de Fato c/c Partilha de Bens n.º 8729/2004, julgou procedente o pleito para declarar e desconstituir a união homoafetiva existente entre as partes do presente recurso e ordenou, ainda, que fosse efetivada a partilha, em igualdade, do valor referente ao imóvel pertencente a ambas.

Analisando os presentes autos, verifico que as razões expendidas pela apelante demonstram, tão-somente, claro inconformismo com o que restou decidido em primeiro grau, na irreparável sentença monocrática. Até mesmo porque, a irresignação da recorrente limita-se a argüir a suposta incompetência do juízo da vara de família para julgar dissolução de sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo, o que tornaria nula a sentença de primeiro grau.

Quanto a esse aspecto, o STJ, recentemente, através da Quarta Turma, decidiu que a Justiça do Rio de Janeiro deverá apreciar, na Vara de Família, uma ação que busca a declaração de união estável entre um casal de homossexuais. Essa decisão, a despeito de não ter reconhecido a união estável homossexual, mas a possibilidade jurídica da ação, estabeleceu que inexiste vedação legal para que prossiga o julgamento do pedido de declaração e possibilitou que o pedido fosse analisado em primeira instância do ponto de vista do direito de família. Vale trazer à baila a ementa jurisprudencial referente a tal julgamento, in verbis:

PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO HOMOAFETIVA. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. OFENSA NÃO CARACTERIZADA AO ARTIGO 132, DO CPC. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. ARTIGOS 1º DA LEI 9.278/96 E 1.723 E 1.724 DO CÓDIGO CIVIL. ALEGAÇÃO DE LACUNA LEGISLATIVA. POSSIBILIDADE DE EMPREGO DA ANALOGIA COMO MÉTODO INTEGRATIVO. 1. Não há ofensa ao princípio da identidade física do juiz, se a magistrada que presidiu a colheita antecipada das provas estava em gozo de férias, quando da prolação da sentença, máxime porque diferentes os pedidos contidos nas ações principal e cautelar. 2. O entendimento assente nesta Corte, quanto a possibilidade jurídica do pedido, corresponde a inexistência de vedação explícita no ordenamento jurídico para o ajuizamento da demanda proposta. 3. A despeito da controvérsia em relação à matéria de fundo, o fato é que, para a hipótese em apreço, onde se pretende a declaração de união homoafetiva, não existe vedação legal para o prosseguimento do feito. 4. Os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, dês que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas mulheres. Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu. 5. É possível, portanto, que o magistrado de primeiro grau entenda existir lacuna legislativa, uma vez que a matéria, conquanto derive de situação fática conhecida de todos, ainda não foi expressamente regulada. 6. Ao julgador é vedado eximir-se de prestar jurisdição sob o argumento de ausência de previsão legal. Admite-se, se for o caso, a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo legislador. 7. Recurso especial conhecido e provido. (STJ. Resp. 820.475/RJ; Quarta Turma; Rel. Min. Luis Felipe Salomão; Data Julgamento: 02.09.2008)


Nesse passo, independentemente de reconhecer ou não a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, o fato é que o STJ, ao assentar entendimento no sentido da possibilidade de discussão de tais relações, acabou por definir a questão da competência, atribuindo-a às Varas de Família, por entender que a ótica da situação deveria ser tida à luz do Direito de Família.

Daí porque não deve prosperar qualquer alegação de nulidade da sentença ou mesmo do processamento do feito em primeiro grau, pois, apesar de, no caso dos autos, o pedido ser de dissolução de união homoafetiva, para tanto, fez-se necessário que primeiro se declarasse a existência de tal união para, posteriormente, fosse determinada sua desconstituição (fls. 145/162). Sendo perfeitamente coerente, assim, a análise do feito pelo Juízo da Vara de Família da Capital.

Ultrapassada essa questão, quanto ao mérito, é cediço que a Constituição Federal, desde 1988[1], já reconhecia a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, e a Lei n.º 9278/1996, em complemento, já dispunha, por seu turno, no art. 1º, in verbis:

É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família.

Ademais, o novo Código Civil, em seus arts. 1.723 e 1.724 é cristalino ao prescrever:

Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência
pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de
constituição de família.

Art. 1.724. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e
de guarda, sustento e educação dos filhos.


Já a doutrina, fazendo uma análise comparativa dos dispositivos acima referidos, preconiza que para caracterização da união estável devem estar presentes quatro elementos essenciais, a saber: 1) a dualidade de sexos; 2) o conteúdo mínimo da relação; 3) a estabilidade e 4) a publicidade.

Ocorre que, a despeito dessa primeira condição imposta referir-se à dualidade de sexo, na linha do que vem sustentando o STJ, os artigos em comento limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, desde que preencham as condições impostas pela lei, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas mulheres. No escólio do Min. Luis Felipe Salomão, in verbis:

O objetivo da lei é conferir aos companheiros os direitos e deveres trazidos pelo artigo 2º (Lei n. 9.278/96), não existindo qualquer vedação expressa de que esses efeitos alcancem uniões entre pessoas do mesmo sexo. Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu[2].


Com efeito, da análise dos dispositivos transcritos parágrafos acima não antevejo em nenhum momento vedação ao reconhecimento de união estável de pessoas do mesmo sexo, mas, tão-somente, o fato de que os artigos citados são aplicáveis a casais do sexo oposto, ou seja, não há norma específica no ordenamento jurídico regulando a relação afetiva entre casais do mesmo sexo. Todavia, nem por isso o caso pode ficar sem solução jurídica, sendo aplicável à espécie o disposto nos arts. 4º da LICC e 126 do CPC, onde o juiz, valendo-se da analogia, pois o relacionamento regular homoafetivo, embora não configure união estável, é análado a esse instituto.

A verdade é que as relações homoafetivas são uma realidade não só no Brasil, mas no mundo, entretanto, até o presente momento, a lei brasileira não disciplina especificamente a questão concernente a tal união. Nada em nosso ordenamento jurídico regula os direitos oriundos dessa relação tão corriqueira e notória nos dias de hoje. A doutrina é unânime em considerar que não pode haver casamento entre pessoas do mesmo sexo, face à diversidade de sexos como requisito fundamental para a caracterização do casamento, assim como a forma solene e o consentimento.

Mas, no meu entender, a defesa do modelo tradicional de família não pressupõe a negação de outras formas de organização familiar, até mesmo porque, além de inexistir incompatibilidade entre a união estável entre pessoas do mesmo sexo e a união estável entre pessoas de sexos diferentes, ou entre estas e o casamento, considero que o não-reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas não beneficia, em nenhuma medida, as uniões convencionais, tampouco promove qualquer valor constitucionalmente protegido.

Tanto é que o próprio STJ, há alguns anos, vem reconhecendo efeitos jurídicos às relações homoafetivas, precipuamente sobre os temas patrimoniais, a exemplo da partilha de bens, inclusão de companheiro como dependente, etc. Senão vejamos:

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO. HOMOSSEXUAIS. HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO. COMPETÊNCIA. VARA CÍVEL. EXISTÊNCIA DE FILHO DE UMA DAS PARTES. GUARDA E RESPONSABILIDADE. IRRELEVÂNCIA. 1. A primeira condição que se impõe à existência da união estável é a dualidade de sexos. A união entre homossexuais juridicamente não existe nem pelo casamento, nem pela união estável, mas pode configurar sociedade de fato, cuja dissolução assume contornos econômicos, resultantes da divisão do patrimônio comum, com incidência do Direito das Obrigações. 2. A existência de filho de uma das integrantes da sociedade amigavelmente dissolvida, não desloca o eixo do problema para o âmbito do Direito de Família, uma vez que a guarda e responsabilidade pelo menor permanece com a mãe, constante do registro, anotando o termo de acordo apenas que, na sua falta, à outra caberá aquele munus, sem questionamento por parte dos familiares. 3. Neste caso, porque não violados os dispositivos invocados - arts. 1º e 9º da Lei 9.278 de 1996, a homologação está afeta à vara cível e não à vara de família. 4. Recurso especial não conhecido." (Resp nº 502.995/RN, Relator o Ministro FERNANDO GONÇALVES, DJ 16-05-2005, p. 353).

PROCESSO CIVIL E CIVIL - PREQUESTIONAMENTO - AUSÊNCIA - SÚMULA 282/STF - UNIÃO HOMOAFETIVA - INSCRIÇÃO DE PARCEIRO EM PLANO DE ASSISTÊNCIA MÉDICA - POSSIBILIDADE - DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO-CONFIGURADA. - Se o dispositivo legal supostamente violado não foi discutido na formação do acórdão, não se conhece do recurso especial, à míngua de prequestionamento.- A relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro dependente em plano de assistência médica. - O homossexual não é cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana. - Para configuração da divergência jurisprudencial é necessário confronto analítico, para evidenciar semelhança e simetria entre os arestos confrontados. Simples transcrição de ementas não basta. (REsp 238.715/RS, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 07/03/2006, DJ 02/10/2006 p. 263)

E ainda aqueles que entendem que a união entre homossexuais, juridicamente, não poderia existir nem pelo casamento e nem pela união estável, mesmo assim reconhecem os efeitos jurídicos de tal relação, caso haja vida em comum, laços afetivos e divisão de despesas. Senão vejamos:

O Direito de Família tutela os direitos, obrigações, relações pessoais, econômicas e patrimoniais, a relação entre pais e filhos, o vínculo do parentesco e a dissolução da família, mas das famílias matrimonial, monoparental e concubinária. A união entre homossexuais, juridicamente, não constitui nem tem o objetivo de constituir família, porque não pode existir pelo casamento, nem pela união estável. Mas se houver vida em comum, laços afetivos e divisão de despesas, não há como se negar efeitos jurídicos à união homossexual. Presentes esses elementos, pode-se configurar uma sociedade de fato, independentemente de casamento ou união estável. [...] (THIAGO HAUPTMANN BORELLI THOMAZ, em artigo na Revista dos Tribunais 807/95


Pois bem. Na situação em comento, conforme exposto sabiamente pelo juiz na sentença de fls. 145/162, através dos documentos juntados aos autos (fls. 25/33), depoimentos testemunhais (fls. 119/120), bem como alegação da própria recorrente em diversos momentos processuais (fls. 79/82, 117/118, 130/135 e 165/172), restaram demonstradas as características típicas de entidade familiar. Isso porque, as partes do presente recurso possuíam residência em comum, convivência duradoura (mais de 10 anos) e pública, pois durante a relação envidaram esforços para manutenção da vida a dois e para a realização de projeto de vida a dois. Ou seja, dos autos facilmente se depreende que as partes passaram a ter uma vida em comum, cumprindo os deveres de mútua assistência, o que importou em obrigações e gerou direitos, típicos de qualquer entidade familiar.

Acrescente-se que, no tocante à partilha de bens, a sentença também se mostra irretocável. Tal qual restou comprovado nos autos, inclusive através do depoimento da apelante (fls. 117/118), o imóvel em que ambas residiam foi adquirido na vigência da união, com cada uma colaborando para aquisição, construção e manutenção do mesmo, configurando, dessa maneira, o esforço mútuo. Daí porque, nada mais justo que o valor referente ao imóvel – já alienado, ressalte-se (fl. 121) – seja rateado entre ambas.

Ante tudo quanto foi exposto, voto pelo não provimento do apelo para que seja mantida a sentença recorrida em todos os seus termos.

É como voto.

Sala das Sessões da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, em São Luís, 18 de dezembro de 2008.

Desembargador CLEONES CARVALHO CUNHA
RELATOR



[1] Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...]
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

[2] STJ. Resp. 820.475/RJ; Quarta Turma; Rel. Min. Luis Felipe Salomão; Data Julgamento: 02.09.2008)