quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

A Medalha e o Tempo

A MEDALHA E O TEMPO

OBS: A Medalha Des. Bento Moreira Lima foi instituida para agraciar magistrados que completaram 10, 20 e 30 anos por relevantes serviços prestados à magistratura.

Tenho acompanhado e com maior interesse há certo tempo, principalmente, o agradecimento de magistrados com a medalha "Desembargador Bento Moreira Lima", pelo fato de atingirem 10, 20 anos e assim pôr diante, na função judicante.

Sem sombra de qualquer dúvida é inegável o reconhecimento da beleza e o significado da solenidade, bem como, a intenção e os objetivos que instituíram aquela comenda e o nome do seu patrono.

Entretanto, nossa reflexão ao caso não se prende a esses valores, mas a forma evidente do sentido manifesto, a priori, da medalha, vez que a mesma é acessível a todos os magistrados indistintamente, conquanto que satisfaça a condição sine Qua - tempo. Assim, o critério encontra-se delineadamente definido.

É evidente, que a contagem para o agradecimento parte de um ponto inicial e se limita a um quantum devidamente convecionado. Portanto, entre os extremos não se avalia o seu conteúdo, pelo menos explicitamente.

No caso em espécie, observa-se que o nivelamento e condição se fazem de forma aritmética e quantitativa ainda, salvo melhor juízo, o nivelamento pôr baixo, levando-se em conta os termos do parágrafo acima.

Desse modo, não é necessário salvo engano, o menor esforço pessoal e /ou funcional do magistrado ou conduta ética para ali chegar, em virtude de o móvel essencial ser o tempo.

A preocupação maior , se é que ele existe, é simplesmente o próximo agraciado esperar a passagem do tempo, vez que este em seu ciclo natural e mecanicista não pode ser adiantado e nem retardado. Por essa razão, não se tem como fazer do ontem, amanhã e do amanhã, o hoje. Assim, a evidência informa que o tempo não é estático.

A temporalidade configura o ser humano diferente do tempo cósmico. A temporalidade atesta o tempo psicológico, histórico, cultural e jurídico diferenciada da temporalidade cronológica.

O contexto jurídico está permeado de experiência temporal, que por sua vez se encontra secundado ou sombreado pela temporalidade linear.

A conclusão deste raciocínio é que o tempo está para todos na mesma proporção em que todos estão para o tempo, em virtude de que dele não podem fugir.

Deste modo, a condição para se chegar à comenda não implica em situação de probabilidade histórico - jurídico, mas da certeza temporal.

Assim, o tempo é o tempo. E há tempo certo para tudo, inclusive, do agraciamento.

Ainda, acompanhando a análise acima nada existe de anormal ou censurável em todo o procedimento, pelo contrário.

Por outro lado, o tempo exigido para obtenção da medalha não é em essência qualitativamente igual para todos.

Destarte, em se direcionando a reflexão o conteúdo delimitado pelos termos inicial e final, verifica-se também que dez anos aritméticos qualitativamente.

A assertiva supra é de fácil compreensão, vez que todos, no período, apesar do mesmo tempo, não desenvolverem uma produção judicante quantitativamente igual ou qualificada.

É bem verdade que alguns ou alguém foi mais ou foi menos disponível no desempenho funcional em pró da justiça, sem, contudo levar em conta a entrância, instância e muito menos o tempo.

É certo ainda, que alguém trabalhou mais ou trabalhou menos em igual tempo linear.

Assim, em juízo pessoal quero acreditar que a medalha em si, tenha probabilidade de não trazer ao agraciado a plenitude do guadium da vitória, em virtude de não se configurar em projeto de conquista pessoal e funcional, mas depender único e exclusivamente do seu elemento fundamental - o tempo.

É óbvio que o exposto acima em nada retira o mérito e o valor da comenda e nem poderia ser, principalmente, porque essa não foi à pretensão e nem o objetivo da presente reflexão, evidentemente.

O ciclo do tempo continua...





terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Paternidade Socioafetiva e a Verdade Real

Paternidade Socioafetiva e a Verdade Real


Paulo Luiz Netto Lôbo
Diretor Nordeste do IBDFAM
Doutor em Direito Civil pela USP
Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça


Sumário: 1. Pressupostos e evolução da paternidade socioafetiva; 2. A opção do legislador brasileiro pela paternidade socioafetiva; 3. Súmula 301-STJ; 4. Os precedentes da Súmula 301; 5. Limites de aplicação da Súmula 301; 6. A questão patrimonial e a solução jurídica que preserva a paternidade socioafetiva; 7. Argumentação conclusiva.



1. Pressupostos e evolução da paternidade socioafetiva

Muito se avançou no Brasil no que a doutrina jurídica especializada denomina paternidade (e filiação) socioafetiva, assim entendida a que se constitui na convivência familiar, independentemente da origem do filho. A denominação agrupa duas realidades observáveis: uma, a integração definitiva da pessoa no grupo social familiar; outra, a relação afetiva tecida no tempo entre quem assume o papel de pai e quem assume o papel de filho.

Cada realidade, por si só, permaneceria no mundo dos fatos, sem qualquer relevância jurídica, mas o fenômeno conjunto provocou a transeficácia para o mundo do direito, que o atraiu como categoria própria. Essa migração foi possível porque o direito brasileiro mudou substancialmente, máxime a partir da Constituição de 1988, uma das mais avançadas do mundo em matéria de relações familiares, cujas linhas fundamentais projetaram-se no Código Civil de 2002.

O ponto essencial é que a relação de paternidade não depende mais da exclusiva relação biológica entre pai e filho. Toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não-biológica; em outras palavras, a paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a paternidade não-biológica.

Tradicionalmente, a situação comum é a presunção legal de que a criança nascida biologicamente dos pais que vivem unidos em casamento adquire o status jurídico de filho. Paternidade biológica aí seria igual a paternidade socioafetiva. Mas há outras hipóteses de paternidade que não derivam do fato biológico, quando este é sobrepujado por outros valores que o direito considera predominantes.

Em escrito publicado no número 1 da Revista Brasileira de Direito de Família (O exame de DNA e o princípio da dignidade da pessoa humana, p. 72), tínhamos chamado atenção para a necessidade de os juristas e profissionais do direito atentarem para a distinção necessária entre genitor e pai. Dissemos:

Pai é o que cria. Genitor é o que gera. Esses conceitos estiveram reunidos, enquanto houve primazia da função biológica da família. Afinal, qual a diferença razoável que deva haver, para fins de atribuição de paternidade, entre o homem dador de esperma, para inseminação heteróloga, e o homem que mantém uma relação sexual ocasional e voluntária com uma mulher, da qual resulta concepção? Tanto em uma como em outra situação, não houve intenção de constituir família. Ao genitor devem ser atribuídas responsabilidades de caráter econômico, para que o ônus de assistência material ao menor seja compartilhado com a genitora, segundo o princípio constitucional da isonomia entre sexos, mas que não envolvam direitos e deveres próprios de paternidade.

A paternidade é muito mais que o provimento de alimentos ou a causa de partilha de bens hereditários. Envolve a constituição de valores e da singularidade da pessoa e de sua dignidade humana, adquiridos principalmente na convivência familiar durante a infância e a adolescência.

A paternidade é múnus, direito-dever, construída na relação afetiva e que assume os deveres de realização dos direitos fundamentais da pessoa em formação “à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar” (art. 227 da Constituição). É pai quem assumiu esses deveres, ainda que não seja o genitor.

Outra categoria importante é a do estado de filiação, compreendido como o que se estabelece entre o filho e o que assume os deveres de paternidade, que correspondem aos direitos mencionados no art. 227 da Constituição. O estado de filiação é a qualificação jurídica dessa relação de parentesco, compreendendo um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados.

O filho é titular do estado de filiação, da mesma forma que o pai é titular do estado de paternidade em relação a ele. Assim, onde houver paternidade juridicamente considerada haverá estado de filiação. O estado de filiação é presumido em relação ao pai registral.

A legislação brasileira prevê quatro tipos de estados de filiação, decorrentes das seguintes origens:

a) por consangüinidade;
b) por adoção;
c) por inseminação artificial heteróloga;
d) em virtude de posse de estado de filiação.

A consangüinidade, a mais ampla de todas, faz presumir o estado de filiação quando os pais são casados ou vivem em união estável, ou ainda na hipótese de família monoparental. O direito brasileiro não permite que os estados de filiação não consangüíneos, referidos nas alíneas b a d, sejam contraditados por investigação de paternidade, com fundamento na ausência de origem biológica, pois são irreversíveis e invioláveis, no interesse do filho.

Por fim, outra categoria que se consagrou no direito brasileiro de família foi o da afetividade, entendida como o liame específico que une duas pessoas em razão do parentesco ou de outra fonte constitutiva da relação de família. A afetividade familiar é, pois, distinta do vínculo de natureza obrigacional, ou patrimonial, ou societário.

Na relação familiar não há fim econômico, cujas dimensões são sempre derivadas (por exemplo, dever de alimentos, ou regime matrimonial de bens), nem seus integrantes são sócios ou associados. Por outro lado, a afetividade, sob o ponto de vista jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, este de ocorrência real necessária.

O direito, todavia, converteu a afetividade em princípio jurídico, que tem força normativa, impondo dever e obrigação aos membros da família, ainda que na realidade existencial entre eles tenha desaparecido o afeto. Assim, pode haver desafeto entre pai e filho, mas o direito impõe o dever de afetividade.

Além dos fundamentos contidos nos artigos 226 e seguintes da Constituição, ressalta o dever de solidariedade entre os membros da família (art. 3º, I, da Constituição), reciprocamente entre pais e filho (art. 229) e todos em relação aos idosos (art. 230). A afetividade é o princípio jurídico que peculiariza, no âmbito da família, o princípio da solidariedade.

2. A opção do legislador brasileiro pela paternidade socioafetiva

Como vimos, a Constituição tomou partido pelo conceito aberto e inclusivo de paternidade. Não há qualquer preceito constitucional que autorize a confusão entre genitor e pai, ou a primazia da paternidade biológica. Apesar disso, são espantosos e recorrentes os desvios doutrinários e jurisprudenciais, seduzidos pela impressão de certeza de exames genéticos, particularmente do DNA.

Encontram-se na Constituição brasileira vários fundamentos do estado de filiação geral, que não se resume à filiação biológica: a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º); b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º); c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º); não é relevante a origem ou existência de outro pai (genitor); d) o direito à convivência familiar, e não a origem genética, constitui prioridade absoluta da criança e o do adolescente (art. 227, caput).

Portanto, toda vez que um estado de filiação estiver constituído na convivência familiar duradoura, com a decorrente paternidade socioafetiva consolidada, esta não poderá ser impugnada nem contraditada. A investigação de paternidade só é cabível quando não houver paternidade, nunca para desfazê-la.

É incabível o fundamento da investigação da paternidade biológica, para contraditar a paternidade socioafetiva já existente, no princípio da dignidade da pessoa humana, pois este é uma construção cultural e não um dado da natureza. Aliás, a contradição é evidente quando se maneja o princípio da dignidade humana com intuito de assegurar a uma pessoa o direito à herança deixada pelo pretenso genitor, pois como disse Immanuel Kant em Fundamentação da metafísica dos costumes a dignidade é tudo aquilo que não tem preço.

Outro fundamento equivocado, frequentemente utilizado pela jurisprudência dos tribunais, antes do Código Civil de 2002, é o art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabelece ser o reconhecimento do estado de filiação direito personalíssimo, indisponível e imprescritível.

O equívoco radica no fato de nele enxergar-se o direito a impugnar paternidade já existente. Estado de filiação, como explicamos, resulta de convivência familiar duradoura. Se já existe, pouco importando sua origem, o art. 27 do ECA é imprestável. Se não existe, ou seja, quando não houver paternidade de qualquer natureza, então o artigo é aplicável, para assegurar o reconhecimento do estado de filiação àquele que nunca o teve.

O Código Civil de 2002, por seu turno, consagrou em sede infraconstitucional as linhas fundamentais da Constituição em prol da paternidade de qualquer origem e não apenas da biológica. Encerrou-se definitivamente o paradigma do Código Civil anterior, que estabelecia a relação entre filiação legítima e filiação biológica; todos os filhos legítimos eram biológicos, ainda que nem todos os filhos biológicos fossem legítimos.

Com o desaparecimento da legitimidade e a expansão do conceito de estado de filiação para abrigar os filhos de qualquer origem, em igualdade de direitos (adoção, inseminação artificial heteróloga, posse de estado de filiação), o novo paradigma é incompatível com o predomínio da realidade biológica. Insista-se, o paradigma atual distingue paternidade e genética.

Destacamos, no Código Civil de 2002, as seguintes referências da clara opção pelo paradigma da paternidade socioafetiva:

a) art. 1.593, para o qual o parentesco é natural ou civil, “conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”. A principal relação de parentesco é a que se configura na paternidade (ou maternidade) e na filiação. A norma, ao contrário do persistente equívoco da jurisprudência, inclusive do STJ, é inclusiva, pois não atribui a primazia à origem biológica; a paternidade de qualquer origem é dotada de igual dignidade;

b) art. 1.596, que reproduz a regra constitucional de igualdade dos filhos, havidos ou não da relação de casamento (estes, os antigos legítimos), ou por adoção, com os mesmos direitos e qualificações. O § 6º do art. 227 da Constituição revolucionou o conceito de filiação e inaugurou o paradigma aberto e inclusivo;

c) art. 1597, V, que admite a filiação mediante inseminação artificial heteróloga, ou seja, com utilização de sêmen de outro homem, desde que tenha havido prévia autorização do marido da mãe. A origem do filho, em relação aos pais, é parcialmente biológica, pois o pai é exclusivamente socioafetivo, jamais podendo ser contraditada por investigação de paternidade ulterior;

d) art. 1.605, consagrador da posse do estado de filiação, quando houver começo de prova proveniente dos pais, ou, “quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos”. As possibilidades abertas com esta segunda hipótese são amplas. As presunções “veementes” são verificadas em cada caso, dispensando-se outras provas da situação de fato. O Código brasileiro não indica, sequer exemplificadamente, as espécies de presunção, ou a duração, o que nos parece a orientação melhor. Por seu turno, o Código Civil francês, art. 311-2, na atual redação, apresenta as seguintes espécies não taxativas de presunção de estado de filiação, não sendo necessária a reunião delas: a) quando o indivíduo porta o nome de seus pais; b) quando os pais o tratam como seu filho, e este àqueles como seus pais; c) quando os pais provêem sua educação e seu sustento; d) quando ele é assim reconhecido pela sociedade e pela família; e) quando a autoridade pública o considere como tal. Na experiência brasileira, incluem-se entre a posse de estado de filiação o filho de criação e a adoção de fato, também chamada “adoção à brasileira”, que é feita sem observância do processo judicial, mediante declaração falsa ao registro público;

e) art. 1.614, continente de duas normas, ambas demonstrando que o reconhecimento do estado de filiação não é imposição da natureza ou de exame de laboratório, pois admitem a liberdade de rejeitá-lo. A primeira norma faz depender a eficácia do reconhecimento ao consentimento do filho maior; se não consentir, a paternidade, ainda que biológica, não será admitida; a segunda norma faculta ao filho menor impugnar o reconhecimento da paternidade até quatro anos após adquirir a maioridade. Se o filho não quer o pai biológico, que não promoveu o registro após seu nascimento, pode rejeitá-lo no exercício de sua liberdade e autonomia. Assim sendo, permanecerá o registro do nascimento constando apenas o nome da mãe. Claro está que o artigo não se aplica contra o pai registral, se o filho foi concebido na constância do casamento ou da união estável, pois a declaração ao registro público do nascimento não se enquadra no conceito estrito de reconhecimento da paternidade.

Diante desses marcos conceituais e legais, no direito brasileiro não há espaço para afirmação da primazia ou, o que é pior, da exclusividade da origem genética para determinar a paternidade, que é mais que um dado da natureza, pois é um complexo de direitos e deveres que se atribui a uma pessoa em razão do estado de filiação seja ele consangüíneo ou não. Assim se encontravam as coisas, quando o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula n. 301, optando pela corrente que parece negar a evolução a que se chegou.

3. Súmula 301-STJ

Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade.

O enunciado, aparentemente, procura ater-se à formação de prova, no campo processual, mas suas conseqüências vão além, atingindo o direito material e tornando tabula rasa a evolução antes demonstrada. Parte do lamentável equívoco de que paternidade biológica é a única que importa, desconsiderando a mudança de paradigmas que se operou no direito brasileiro, em total desconhecimento de sua natureza socioafetiva.

Se o exame de DNA concluir que A é genitor de B então a paternidade estaria definida. Por outro lado, induz o réu a produzir prova contra si mesmo, invertendo um princípio que resultou da evolução do direito e da emancipação do homem. Confunde investigação da paternidade com o direito da personalidade de conhecimento da origem genética.

Cria desnecessariamente mais uma presunção no direito de família: a da confissão ficta ou da paternidade não provada. Não faz referência às demais provas indiciárias, que contribuam para o convencimento do juiz. Não ressalva o estado de filiação já constituído, cuja história de vida é desfeita em razão da presunção de paternidade biológica.

Outro notável equívoco é a identificação subjacente à súmula, constantemente referida em seus precedentes, da verdade real na verdade biológica. Mas a verdade social da paternidade socioafetiva é tão real quanto a biológica, aferível por todos os meios de prova admitidos em direito. O paradigma do atual direito brasileiro é a paternidade de natureza socioafetiva, hipercomplexa e inclusiva, que pode ter origem biológica ou não biológica. A partir desse paradigma é que se deve pesquisar a verdade real, que pode ser diferente da que a origem genética indica (adoção, inseminação artificial heteróloga e posse de estado de filiação).

A Súmula indiretamente contradiz a orientação assentada no Supremo Tribunal Federal no HC 71.373/RS, de 1996, no sentido de que ninguém pode ser obrigado a submeter-se a exame de DNA, pois tal ato violaria garantias constitucionais explícitas e implícitas, a saber, “preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta da obrigação de fazer”. Ao impor, como resultado da recusa ao exame de DNA, a conseqüência da paternidade presumida, na ordem prática das coisas, viola todas as garantias preservadas pelo STF. Para não sofrer tais conseqüências, o réu terá de se submeter ao exame.

A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no registro civil, determina o art. 1.603 do Código Civil. O registro pode conter a filiação biológica ou a filiação não biológica. Não se exige que o declarante faça qualquer prova biológica; basta sua declaração. A declaração, como qualquer outra, poderá estar viciada por erro ou por falsidade. Mas não haverá erro ou falsidade da declaração para registro de filiação oriundo de posse de estado, consolidado na convivência familiar.

4. Os precedentes da Súmula 301

A Súmula 301 faz referência a sete precedentes, com respectivos anos das decisões do STJ: AGA 498.398-MG (2003), RESP 55.958-RS (1999), RESP 135.361-MG (1998), RESP 141.689-AM (2000), RESP 256.161-DF (2001), RESP 409.285-PR (2002), RESP 460.302-PR (2003).

O traço em comum encontrado nas decisões, com exceção da última referida, é a inexistência de pai registral (a criança apenas foi registrada com indicação da mãe), voltando-se as respectivas investigações de paternidade para imputa-la aos genitores biológicos. Como demonstraremos, a súmula seria aceitável se explicitasse sua aplicação a essa hipótese e desde que a presunção viesse conjugada à existência de provas indiciárias. A última decisão, todavia, demonstra que não é esse o seu alcance pretendido, pois resulta em desconsideração da paternidade socioafetiva. Passemos ao destaque dos pontos que interessam em cada uma das decisões.

No AGA 498.398-MG está dito que a recusa injustificada à realização do exame de DNA contribui para a presunção de veracidade. Ou seja, a recusa justificada afastaria a presunção e a presunção depende da existência de provas, pois apenas contribui. A decisão foi favorável, apesar de o agravante (réu) alegar que em nenhum momento o autor conseguiu “produzir indícios de provas de seu alegado direito”, o que em parte foi confirmado pelo relator do tribunal recorrido (“a provas dos autos é evidentemente frágil, pois os depoimentos testemunhais são contraditórios”).

No RESP 55.958-RS diz-se (ementa) que as decisões locais encontraram fundamento “em caudaloso conjunto probatório” e que a recusa ao exame de DNA induz presunção que milita contra a irresignação do investigado. Ora, se as provas são caudalosas qual a utilidade da presunção?

No RESP 135.361-MG constata-se que há “elementos suficientes de convicção sobre a paternidade imputada ao investigado”. Pela mesma razão da decisão anterior, qual a utilidade da presunção? Neste caso, o mais grave foi admitir-se a presunção, em virtude da recusa dos irmãos e herdeiros do investigado (falecido). A investigação de paternidade foi manejada para fins exclusivamente econômicos.

No RESP 141.689-AM foi decisivo para o julgamento favorável à investigação da paternidade o fato de o investigado ter recusado o exame por mais de dez vezes, pois seu relacionamento com a mãe do investigante foi ocasional, inexistindo outras provas indiciárias. Para fins de imputar a paternidade a alguém pouco importa a quantidade de recusa a submeter-se ao exame.

No RESP 256.161-DF invocou-se o “princípio da garantia da paternidade responsável” para fazer valer a presunção (maioria da Terceira Turma do STJ). Note-se que os votos vencidos, inclusive do relator originário, chamaram a atenção para o fato de que “não há provas de que a mãe da autora e o réu tenham mantido relações sexuais” e que o Tribunal só tem admito a “presunção negativa de realização do exame de DNA apenas quando as provas complementares do processos são no sentido da paternidade”.

No RESP 409.284-PR a Quarta Turma do STJ por unanimidade reconhece que “tal presunção não é absoluta, de modo que incorreto o despacho monocrático ao exceder seu alcance, afirmando que a negativa levaria o juízo de logo a presumir como verdadeiros os fatos, já que não há cega vinculação ao resultado do exame de DNA ou à sua recusa, que devem ser apreciados em conjunto com o contexto probatório global dos autos”. Essa advertência bem demonstra o risco que a orientação simplista extraída do enunciado da súmula pode levar.

Finalmente, o RESP 460.302-PR expande perigosamente o alcance dessa orientação, pois resultou em negativa da paternidade socioafetiva existente, para atingir fins meramente econômicos. Tratou-se de ação negatória de paternidade proposta pela viúva e filhos do autor da herança contra menor impúbere filho registral deste com outra mulher, sob alegação de não ser filho biológico, com o fito de determinar “a exclusão da certidão de nascimento do nome ali constante como pai, dos avós paternos e apelidos de família”. Essa violação à paternidade socioafetiva declarada pelo pai falecido junto ao registro público foi perpetrada sob argumento de constituir presunção desfavorável “a recusa da parte em submeter-se ao exame de DNA”.

Do conjunto dos precedentes, percebe-se que a súmula é totalmente inútil, equivocada em seus fundamentos e violadora de princípios constitucionais. Sob a sedução do progresso científico e da grande precisão do exame de DNA, parte-se de premissa falsa que contamina todo resultado e leva a decisões injustas, a saber, a de que toda paternidade seria biológica e esta seria a verdade real.

5. Limites de aplicação da Súmula 301

Pelas razões aduzidas, melhor seria que essa súmula nunca tivesse sido editada. Por outro lado, as razões de sua edição, os limites e restrições a seu alcance que se encontram dispersos em seus precedentes referidos, tendem a não ser considerados na aplicação cotidiana do direito, ante a inclinação natural de render-se à simples literalidade do enunciado. Ainda que não tenha efeito vinculante, na prática judiciária a súmula do STJ funciona com a mesma força normativa de regra legal, para os aplicadores do direito, o que bem demonstra o risco de otimização de seus desvios e equívocos.

Todavia, enquanto essa súmula perdurar, dois grandes limites implícitos devem ser observados para sua adequada aplicação e interpretação em conformidade com a Constituição e o Código Civil: a) não pode resultar em negação de paternidade derivada de estado de filiação comprovadamente constituído; b) a presunção de paternidade, em ação investigatória quando haja apenas mãe registral, depende da existência de provas indiciárias consistentes, não podendo ser aplicada isoladamente.

A Súmula 301 restringe-se à investigação da paternidade; assim é incabível como fundamento de ação negatória ou de impugnação de paternidade. A investigação ou reconhecimento judicial da paternidade tem por objetivo assegurar pai a quem não o tem, ou seja, na hipótese de genitor biológico que se negou a assumir a paternidade. Portanto, é incabível nas hipóteses de existência de estados de filiação não biológica protegidos pelo direito: adoção, inseminação artificial heteróloga e posse de estado de filiação. É totalmente incabível para constituir paternidade desconstituindo a existente.

O Código Civil apenas admite duas hipóteses de impugnação da paternidade: uma, pelo marido (art. 1.601), outra, pelo filho contra o reconhecimento da filiação (art. 1.614). Não há, pois, fundamento legal para a espantosa disseminação de ações negatórias de paternidade, com intuito de substituí-la por suposta paternidade genética. Só o marido pode impugnar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, que não sejam biologicamente seus. Esse direito é de exercício exclusivo e imprescritível, mas desde que não se tenha constituído o estado de filiação na convivência familiar duradoura. A impugnação do reconhecimento de filiação é exercício exclusivo do filho, quando atingir a maioridade e desde que o faça dentro do prazo decadencial de quatro anos após esse evento.

A segunda grande limitação é a impossibilidade de utilização isolada da presunção, significando dizer que é apenas um dos elementos que formam o convencimento do juiz. Sem prova ou provas indiciárias convincentes, trazidas aos autos pelo autor, não pode o juiz aplicar a súmula 301. Os precedentes da súmula deixam claro tal requisito. Nos julgamentos posteriores à súmula, ao longo de 2005, o STJ tem restringido sua aplicação, como se vê no RESP 692.242-MG, cuja ementa enuncia que

Apesar da Súmula 301/STJ ter feito referência à presunção juris tantum de paternidade na hipótese de recusa do investigado em se submeter ao exame de DNA, os precedentes jurisprudenciais que sustentaram o entendimento sumulado definem que esta circunstância não desonera o autor de comprovar, minimamente, por meio de provas indiciárias a existência de relacionamento íntimo entre a mãe e o suposto pai.

6. A questão patrimonial e a solução jurídica que preserva a paternidade socioafetiva

A profunda mudança de paradigma da paternidade, no direito brasileiro, significou centralizar a atenção na realização existencial das pessoas envolvidas (pai e filho) e na afirmação de suas dignidades; em uma palavra, na repersonalização. Os interesses patrimoniais, que antes determinavam as soluções jurídicas nas relações de família, implícita ou explicitamente, perderam o protagonismo que detinham, assumindo posição de coadjuvantes dos interesses pessoais.

Assim, não podem os interesses patrimoniais ser móveis de investigações de paternidade, como ocorre quando o pretendido genitor biológico falece, deixando herança considerável. Repita-se: a investigação de paternidade tem por objeto assegurar o pai a quem não tem e nunca para substituir a paternidade socioafetiva pela biológica, até porque esta só se impõe se corresponder àquela.

Todavia como resolver o inevitável conflito que se instaura entre esses interesses, de modo a preservar a paternidade socioafetiva? Sob outra perspectiva, é razoável a pretensão patrimonial daquele que teve negado seu originário direito à filiação, cuja paternidade foi assumida por outrem. Advirta-se que o conflito apenas é possível em se tratando de situações enquadráveis na posse de estado de filiação, pois os demais estados de filiação não-biológica, isto é, decorrentes de adoção e de inseminação artificial heteróloga, cortam integralmente a relação com o passado biológico; nestas duas últimas hipóteses, a presunção legal de paternidade é absoluta, não podendo haver qualquer relação jurídica com o genitor biológico, salvo para fins de impedimento para casar.

Tampouco pode ser admitido conflito de interesses que conduza a atribuir responsabilidade jurídica a dador anônimo de sêmen ou gametas crioconservados em instituições e destinados a reprodução medicamente assistida. O item 3 do Capítulo IV da Resolução n. 1.358/1992 do Conselho Federal de Medicina, estabelece norma deontológica - que serve de norte para decisão, à falta de norma jurídica geral - assim enunciada:

Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.

Posta a questão dentro desses limites, de que modo podem ser compatibilizados os interesses pessoais e patrimoniais, quando o conflito se der entre paternidade socioafetiva derivada de posse de estado de filiação e o pretendido interesse em imputar responsabilidade ao genitor biológico falecido? A resposta pode ser encontrada nas categorias gerais do sistema jurídico.

O estado de filiação é matéria afeta ao direito de família, inviolável por decisão judicial que pretenda negá-lo, pelas razões já expostas. Não pode haver, consequentemente, sucessão hereditária entre filho de pai socioafetivo e seu genitor biológico; com relação a este não há direito de família ou de sucessões. Mas, é possível resolver-se a pretensão patrimonial no âmbito do direito das obrigações.

É razoável atribuir-se-lhe um crédito decorrente do dano causado pelo inadimplemento dos deveres gerais de paternidade (educação, assistência moral, sustento, convivência familiar, além dos demais direitos fundamentais previstos no art. 227 da Constituição) por parte do genitor biológico falecido, cuja reparação pode ser fixada pelo juiz em valor equivalente ao de uma quota hereditária se herdeiro fosse. Para isso será necessário ajuizar ação de reparação de dano moral e material, habilitando-se no inventário como credor do espólio, com requerimento de reserva de bens equivalentes para garantia da ação.

7. A argumentação conclusiva

A paternidade socioafetiva não é espécie acrescida, excepcional ou supletiva da paternidade biológica; é a própria natureza do paradigma atual da paternidade, cujas espécies são a biológica e a não-biológica.

Em outros termos, toda a paternidade juridicamente considerada é socioafetiva, pouco importando sua origem. Nas situações freqüentes de pais casados ou que vivam em união estável, a paternidade e a maternidade biológicas realizam-se plenamente na dimensão socioafetiva. Sua complexidade radica no fato de não ser um simples dado da natureza, mas uma construção jurídica que leva em conta vários fatores sociais e afetivos reconfigurados como direitos e deveres. Superou-se a equação simplista entre origem genética, de um lado, e deveres alimentares e participação hereditária, de outro. A paternidade é múnus assumido voluntariamente ou imposto por lei no interesse da formação integral da criança e do adolescente e que se consolida na convivência familiar duradoura.

Toda pessoa, especialmente a pessoa humana em formação, tem direito à paternidade. Se não a tem, porque ninguém a assumiu voluntariamente, pode investigá-la para que seja reconhecida judicialmente e imputada ao genitor biológico. No plano jurídico, a afetividade é princípio e, como tal, dotado de força normativa, impondo deveres e conseqüências por seu descumprimento. Por isso, não se confunde com o afeto como simples fato anímico e psicológico. A decisão judicial no reconhecimento forçado da filiação declara e impõe a paternidade em sua total dimensão socioafetiva, cujos deveres de natureza moral e material devem ser cumpridos.

Nem toda paternidade socioafetiva resulta da consangüinidade, pois o direito assegura igualdade de direitos e deveres ao pai que assumiu voluntariamente o estado de filiação nas hipóteses adoção, de inseminação artificial heteróloga e de posse de estado. Em todas, o estado de filiação assim constituído é inviolável e não pode ser desfeito por decisão judicial, salvo na situação comum de perda do poder familiar (art. 1.638 do Código Civil).

A paternidade desaparece em face do genitor biológico em virtude da perda do poder familiar, nas hipóteses de adoção e de declaração judicial de posse de estado de filiação, e nunca aparece nas hipóteses de inseminação artificial heteróloga e de dação anônima de sêmen.

A paternidade socioafetiva decorrente da posse de estado de filiação não pode ser contraditada, mas como evitar que aquele que não cumpriu seu dever de paternidade fique impune? Cogita-se de responsabilidade civil por dano imputável ao genitor biológico quando não assumir os deveres de paternidade e quando não seja possível a investigação judicial, em virtude de outro homem já ter assumido a paternidade socioafetiva com a constituição do estado de filiação.

Essa solução, no campo do direito das obrigações, somente é possível quando a paternidade resultar de posse de estado de filiação, sendo vedada nas paternidades derivadas da adoção regular e da inseminação artificial heteróloga, pois há total desfazimento de laços jurídicos com os genitores biológicos.

Dessa forma harmonizam-se o princípio da imodificabilidade do estado de filiação e o dever genérico de responsabilidade por dano, o direito de família e o direito das obrigações. Esse tipo de reparação qualifica-se como punitivo, cuja excepcionalidade compreende-se no requisito que se consolida no Brasil para recepção da doutrina do punitive damage.

Posto assim o estado da arte nessa matéria, conclui-se pela impropriedade da Súmula 301. Ela é equivocada porque parte de pressuposto falso, a saber, a da identidade da paternidade com a origem genética, desconsiderando o paradigma atual da socioafetividade.

Ela é inútil porque depende da existência de provas indiciárias para que a presunção possa ser aplicada Ela é injusta porque induz o réu a produzir provas contra si mesmo e porque serve de instrumento a interesses meramente patrimoniais, que nunca prevalecem quando o genitor biológico é pobre.

Ela é contraditória porque indiretamente viola princípios constitucionais ressaltados no precedente do Supremo Tribunal Federal (HC 71.373-RS); a recusa ao exame do DNA não pode ser tida como presunção desfavorável, pois os princípios constitucionais tutelam quem assim age, e se não se pode produzir provas contra as ormas legais, também não se pode admitir presunção que leve ao mesmo efeito. Ela é desnecessária porque há solução dentro do sistema jurídico para a pretensão de natureza patrimonial, sem necessidade de negar o estado de filiação constituído.

sábado, 19 de janeiro de 2008

Antinomia no Sistema Jurídico


ANTINOMIA NO SISTEMA JURIDICO


Antinomia significa o conflito de norma dentro do mesmo sistema ou ordenamento jurídico.

Etimologicamente provem do grego anti = contrário e nomo = norma. Assim, passa implicara contradição entre duas normas, disciplinando a mesma matéria.

Numa ótica lógica é a lacuna de colisão, vez que em sendo as regras conflitantes, elas se excluem mutuamente, vista que não há dificuldade nessa exclusão em elege uma como a mais forte ou ainda, por não haver uma regra que permita ao julgador decidir entre elas.

Portanto, as regras conflitantes são excludentes, diferentes dos princípios que coexistem no mesmo sistema.

A antinomia implica na impossibilidade de se aplicar, concomitantemente, duas normas jurídicas precisas e que não são entre si subordinadas.

È sem dúvida a antinomia uma contradição de raciocínio lógico pelo fato de existir duas normas regulamentando o mesmo comportamento, uma, evidentemente, vedando o que a outra permite e esta permitindo o que a primeira obriga.

Nesse sentido as duas normas não podem ser ao mesmo tempo, logicamente verdadeiras e falsas. A questão é saber como os princípios lógicos, em especial o da não-contradição, podem ser aplicados.

A respeito do assunto, Noberto Bobbio, jurista italiano, faz referencia em sua obra Teoria do Ordenamento Jurídico: “podemos definir antinomia jurídica como aquela situação que se verifica em duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e tendo o mesmo âmbito de verdade”.

A problemática da antinomia no contexto do Direito não é nova, data, portanto de tempos imemoriais da civilização grega sofrendo configurações de acordo com o tempo e o espaço, levada pelas circunstâncias históricas.

Pode-se considerar num processo evolutivo jurídico até o século XIII, como o período denominado de sistema irracional, assim chamado pela ausência de regras sistemáticas-normalizadoras na aplicação dos litígios.

Os julgadores em regra buscavam suas decisões nos mecanismos das ordálias, fundamentadas em provas advindas da misericórdia divina.

Os juizes acreditavam categoricamente que a providência divina sempre se colocava na intersecção do inocente. Assim, os litigantes eram determinados pelos julgadores para colocarem a mão dentro de um braseiro e aquele que agüentasse por mais tempo, com certeza, não era considerado o culpado, tendo, portanto, o julgamento a seu favor julgado procedente.

O segundo momento se sobressai pela prevalência do direito costumeiro, sendo a base dos julgamentos os costumes locais. Entretanto nem sempre os julgadores conheciam todos os costumes e os litígios eram solucionados pela utilização freqüente do livre arbítrio.

O terceiro momento inicia com a Idade Moderna com a aplicação sistemática das leis escritas. Num primeiro passo ocorre o conflito entre a lei e os costumes, com a prevalência destes.

A separação dos Poderes do Estado estava por se consolidar de forma que o elaborador da lei a aplicava e procedia no julgamento.

O advento do século XVIII trás uma concepção diferenciada do Direito em relação aos períodos anteriores passando a predominar a força da razão quando ao saber e quanto a perspectiva do universo, desvinculando o Direito do viés clássico e das orientações teológicas medievais, ante ao surgimento do racionalismo, empirismo, evolucionismo, positivismo e outras tendências filosóficas.

Em face às mudanças levou naturalmente a uma exigência maior com relação ao instituto da antinomia em virtude da lei passar a assumir a conotação de fonte primária do Direito.

A prevalência da razão implicou na elaboração da lei a cargo do legislador. A função judiciária adquiriu “independência”. A decisão do juiz monocrático passou ao exame de instância superior. Instituiu-se do due processo f law, com garantia da ampla defesa e do contraditório como elementos fundamentais de direitos do cidadão.

Nesse sentido a sistematização favoreceu as condições para o estudo científico do Direito e o defluir jurídico-científico do conflito normativo.

Assim, nesse novo momento histórico emergiram os fundamentos da democracia moderna, sem, contudo perder a essencialidade pontuada há alguns séculos pela mente da inteligibilidade grega.

Ressalta-se por oportuno um dos princípios fundamentais expressando que: o povo há de se governar por meio de representantes, que deve elegê-los levando em conta a sua capacidade, a fim de que estes, usando a razão, realizem o bem social.

Este argumento exige um estudo mais detalhado. Vejamos:

Primeira premissa: o povo se governa por representantes. Esta é a autentica afirmação da doutrina democrática moderna, diferente do sistema democrático grego considerado modelo até o século XVII, tendo como um dos defensores o pensador Rousseau, no Contrato Social.

Maquiavel, por sua vez, no Espírito das Leis, não justificou a representação por necessidade, mas admitiu que o representante carregasse sobre os ombros a tarefa de querer o devotamento do interesse geral e não priorizar seus desejos ou satisfazer suas vontades.

Surge, aqui, a distinção nem sempre aceita entre os interesses de todos e o interesse geral. Entretanto, em ambos exige-se a participação. Portanto, a diferença não é de forma, mas de conteúdo. O interesse de todo envolve evidentemente a todos quantos participam e o interesse geral inclui a todos os casos.

Segunda premissa: os representantes devem ser mais capazes. Infere-se que a representação deve recair sobre os mais capazes. A pergunta que se impõe é saber quem é o mais capaz, vez que a doutrina democrática não fundamenta a questão.

Montesquieu defendia a idéia de se conhecer o mais capaz pela convivência, vez que todos que convivem em uma comunidade sabem quem é e quem não é dotado de capacidade porque todos conhecem as condutas de todos, sendo dessa forma fácil de identificar, os capazes, incapazes, honestos e desonestos para o serviço público.

Nessa linha de raciocínio os selecionados são admitidos como os capazes. Este procedimento democrático diferencia do adotado pelos gregos onde a escolha ocorria através do sorteio, nivelando a todos numa mesma condição.

O de mais importante neste contexto é o fato de ser admitido que a administração não se caracteriza por ser a do homem, mas a da norma, em que esta coloca freios nos abusos e interesses particulares e de grupos e têm como sustentáculo da administração um planejamento definido, não em função de um período administrativo, mas de objetivos do poder administrativo.

Assim, teremos valores básicos do mecanismo da democracia representativa exigindo maior participação popular através do processo eleitoral, inclusive na elaboração das leis.

Retomando a linha inicial do pensamento quando a sistematização, o ordenamento normativo passou a se constituir de universos jurídicos departamentalizados em constitucional, civil penal, administrativo, tributário etc., cabendo ao operador do Direito efetuar o nexo entre cada um deles e tornar-los uma realidade jurídico-social.

No confronto de normas alguns critérios solucionadores devem ser observados, como:

1 – lex posterior derrogat legi priori;
2 – lex speciali derrogat legi generali
3 – lex superior derrogat legi inferiori.

Em conclusão observa-se que a antinomia está inserida na tessitura dos sistemas jurídicos e alem dos conflitos aparentes existem os considerados reais de conteúdos complexos e controvertidos com critérios no nível da meta-regra ou meta-critério, a exemplo da lei ordinária que contraria o texto constitucional configurando assim sua inconstitucionalidade.

Fontes:
BOBBIO, Noberto. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. RF.1995.
Revista dos Tribunais. Ano 1, no 02-93. Instituto Brasileiro de Direito Constitucional.
________________ Ano 1, no 04-93. Instituto Brasileiro de Direito Constitucional.
VIEIRA, Luis Vicente. A Democracia em Rousseau. Porto Alegre. Edipuc. 1996 (Coleção Filosófica).
WEFORT. Francisco C. Os Clássicos da Filosofia. SP. Àtica. 1995.








terça-feira, 15 de janeiro de 2008

A Universidade no século XIII


AS UNIVERSIDADES E OS FRANCISCANOS NO SÉCULO XIII

Segundo muitos historiadores, o século XIII pode ser considerado o auge da Idade Média. Neste século que vai, segundo Le Goff, de 1180 a 1270, a sociedade européia, estava mais estruturada e equilibrada, o sistema feudal mais estável do que nos séculos precedentes. O poder público se consolida às expensas do poder senhorial da nobreza tradicional; a sociedade urbana se estratifica sempre mais em patriciado, corporações e pobres, criando uma elite patronal e política sobre artesãos e trabalhadores.

A burguesia das corporações forma a espinha dorsal da sociedade urbana, comandada pelas poucas famílias do patriciado, geralmente composto de grandes mercadores. A existência de um sem-número de ofícios e profissões atesta a já acentuada divisão do trabalho social.

Além do crescimento demográfico de 61 para 73 milhões de habitantes entre 1200 e 1300, a Europa conhece uma fase de prosperidade econômica, devido sobretudo à prosperidade rural. A fome retrocede com o aumento das superfícies cultivadas e da produtividade e com o comércio internacional emergente. Também nesta fase são introduzidas importantes inovações tecnológicas: no campo, o emprego do arado a cavalo, dos moinhos a água e de novas técnicas de cultivo; nas cidades, dá-se um grande avanço na indústria têxtil pelo emprego do tear horizontal, do pisão e dos tornos de fiar.

A Europa, que antes importava do Oriente, passa a confeccionar tecidos de luxo e semi-luxo, muito cobiçados pela nobreza e a burguesia. As grandes construções góticas exigem a invenção de novos instrumentos e técnicas, depois aplicados em outros setores da vida social. Do ponto de vista do comércio, os negócios conhecem um verdadeiro apogeu, possibilitado pelo estabelecimento de novas rotas comerciais, pela criação das grandes feiras nos centros comerciais e pela especialização das regiões produtoras. Empurrada pelo comércio e a atividade cambial, dá-se a expansão da economia monetária. Há um grande aumento de moedas de prata e ouro em circulação e o dinheiro se consolida como equivalente universal. Por outro lado, por causa dos empréstimos contraídos, os camponeses se endividam de forma crescente.

Do ponto de vista da arte, as catedrais góticas atingem seu esplendor, revolucionando a arquitetura românica. Do ponto de vista político, este é o século do poder monárquico da Igreja, da autoridade absoluta dos papas, modelo do posterior triunfo monárquico absolutista. Mas isto não acontece sem resistências e contestação: surgem os movimentos pauperísticos, milenaristas e heréticos.

O papa convoca uma cruzada contra cátaros e albigenses na França e cria a Inquisição pontifícia, impondo o medo e enchendo as prisões com a ajuda do poder público que lhe era submisso.

Apesar disso, em termos da cultura intelectual e espiritual da Idade Média, o século XIII também representa um ponto alto. Neste período se dá a organização do patrimônio intelectual e artístico da sociedade européia.

Gostaria de apontar, citando Hans Wolter, para três elementos que contribuíram sobremaneira para o enriquecimento da cultura, das artes e da ciência: Primeiro, a redescoberta e o estudo das obras do aristotelismo através da tradução, do comentário e da incorporação da filosofia grega na filosofia e na teologia cristãs. Devemos nos lembrar que, por muitos séculos, as grandes obras de diversos filósofos gregos, sobretudo Aristóteles, se tornaram desconhecidas ou não eram acessíveis aos pensadores do Ocidente.

Apenas os escritos de Platão, e assim mesmo através da interpretação da escola neoplatônica de Plotino e Boécio, eram lidos e trabalhados, influenciando de forma decisiva, por exemplo, o pensamento de Santo Agostinho. Quando as grandes obras de Aristóteles, o Organon, a Metafísica, a Ética, a Política e os chamados “libri naturales” foram traduzidas para o latim, foi um alvoroço geral, uma verdadeira ebulição intelectual nos centros de estudo europeus. Para isto, contribuíram de forma decisiva os embates teóricos com os comentadores e sábios árabes e judeus e, após 1260, também diretamente com os gregos.

Em segundo lugar, caracteriza o séc. XIII a rápida expansão e consolidação das Universidades, sobretudo as universidades de Bolonha, Paris, Oxford e Cambridge, as três últimas com uma influência marcante dos franciscanos. Mas além delas surgiram outros centros de estudos em Chartres, Reims, Montpellier e Toulouse na França; Salerno, Pádua e Nápoles na Itália; Toledo, Valência, León e Salamanca na Espanha e Coimbra em Portugal.

Com a exceção de Bolonha, a universidade mais antiga, onde estudantes e professores conseguiram por determinado tempo uma autonomia frente ao governo da cidade e frente à jurisdição do bispo, todas as outras, mesmo possuindo estatutos próprios, estavam de alguma forma dependentes do protetorado do rei ou do papa, ou de ambos.

Por isso o que se passava nas universidades e o que era ensinado não era indiferente a esses “protetores”. Freqüentemente intervinham rei, príncipe ou o papa para influenciar e tentar controlar professores e alunos e as teorias que produziam. Algumas vezes intervinham para defender a “corporação universitária” da tentativa de controle por parte da instância adversária. A vida nestas universidades se passava quase sempre no espaço eclesial, uma vez que quase todos os estudantes eram religiosos ou clérigos.

Professores e discípulos moravam próximos, formando verdadeiras comunidades e corporações de vida e estudo. Em Paris, que logo se tornou ponto de referência para as demais, existiam quatro faculdades: Teologia, Medicina, Artes Liberais (formação de base – Filosofia) e o Decretum ou Direito Canônico. Outras universidades incluíam ou se concentravam no Direito Civil, como Bolonha. Normalmente era preciso passar seis anos na faculdade de Artes e também seis nas faculdades de Medicina e Direito.

Em Paris a faculdade de Teologia demorava oito anos e exigia dos candidatos ao doutorado a idade mínima de 35 anos. Cada universidade tinha seu escudo, símbolo de sua “liberdade”, e seus estatutos, que lhes garantiam diversos privilégios, como autonomia jurisdicional e o monopólio na concessão de graus universitários. Portanto, apenas uma pequena elite intelectual e social, em geral ligada à Igreja e aos círculos da administração, tinha acesso à educação superior na época.

O nome “universitas” (surgido em 1219 em Bolonha) tinha a ver com a totalidade, com o universo de corporações de mestres e alunos que compunham a universidade. A universidade surge com um caráter marcadamente internacional: tanto alunos como professores provinham de diversas regiões e países e às vezes circulavam entre universidades da França, Alemanha e Inglaterra. Além disso, a designação “universitas” sugeria a tentativa de organizar e trabalhar a universalidade do conhecimento humano. Um particular interesse é que as universidades nascentes já sofriam com a falta de dinheiro e financiamento, com o número insuficiente de salas de aula e de moradia para os seus membros.

O número de estudantes nas maiores escolas atingia a casa dos milhares. Em Paris, o ensino de Teologia e Artes era gratuito, mas as faculdades de Direito e de Medicina cobravam taxas, sobretudo por ocasião dos exames. Os exames eram fundamentais para se conceder a licentia docendi, a permissão para lecionar, sem a qual nenhum formando podia tornar-se professor. Um método de investigação logo se torna o principal instrumento teórico dos estudantes e professores: a Escolástica. O raciocínio escolástico clássico passa por quatro momentos: primeiro vem a leitura de um texto (a lectio) que, aliás, logo a seguir é dispensada; depois vem a colocação de um problema (a quaestio); em terceiro vem a discussão e o debate em torno da questão (a disputatio), que constitui o ponto alto de todo o método; por último, vinha a solução do problema (a determinatio), fruto de uma decisão intelectual do mestre.

Com tudo isso, foi nas universidades do século XIII que se desenvolveu a vida intelectual e científica da Europa, foi aí que se cultivou a ciência filosófica e teológica, a Medicina e o estudo do Direito romano e canônico. Foi justamente neste espaço universitário, que se fez a recepção e a interpretação das obras de diversos pensadores mais antigos, como as Decretais de Graciano ou o Livro das Sentenças de Pedro Lombardo. Mas o estudo logo se concentrou sobre os filósofos gregos, em cujo centro estavam os diversos livros de Aristóteles.

Os centros de estudos de Toledo e Nápoles serviram com ponte de comunicação e interface entre o mundo cristão e a cultura árabe. Foi através das traduções do sírio e do árabe que o legado da filosofia grega atingiu o Ocidente, sobretudo através das obras dos filósofos árabes Alfarabi, Avicena, Averróis e dos filósofos judeus Avicebron e Moisés Maimônides. Em Nápoles e Toledo trabalhavam juntos tradutores e pensadores judeus, árabes e cristãos, numa forma de tolerância que a Inquisição e os períodos seguintes não mais iriam permitir.

Em terceiro lugar contribuiu para o apogeu da cultura e da ciência neste século XIII, sem dúvida alguma, o aparecimento das Ordens Medicantes, franciscanos e dominicanos. Em vez de instalar-se no campo ou nos ermos, os frades mendicantes se estabeleceram nas cidades. Deste modo, puderam estar em contacto com os problemas mais agudos da sociedade do século XIII, com as categorias sociais novas do mundo urbano em plena expansão. O elemento italiano, preponderante no princípio entre os franciscanos, tornou-se depois minoritário, ainda que continuasse sendo forte: em 1263 havia, por exemplo, mais de 1100 conventos de menores só na Itália.

As ocupações principais dos mendicantes não eram os ofícios religiosos e nem o trabalho manual (típico dos beneditinos) e sim a pregação e a devoção. Para assegurá-las no meio urbano tiveram que adquirir, em escolas e universidades, uma formação sólida baseada nos novos métodos da Escolástica. Desde cedo ambas as Ordens se dedicaram muito à atividade missionária, enviando frades ao norte da África, à Ucrânia, Pérsia, Mongólia e até à China. Ramon Llull, por volta de 1275, fundou em Miramar, na ilha de Mallorca, um convento de franciscanos que tinham que aprender o árabe, visando a tarefa missionária entre os muçulmanos. Como se sabe, São Francisco esteve pessoalmente na Terra Santa em missão de pregação pacífica, e a Ordem conseguiu do sultão o direito e o privilégio de cuidar dos lugares santos.

Por volta da metade do século XIII, franciscanos e dominicanos se estabeleceram nas imediações das grandes universidades de Paris, Oxford e Cambridge e influenciaram de forma decisiva o desenvolvimento das ciências e da cultura, sobretudo nos rumos tomados pela filosofia, pela teologia e pela epistemologia. A influência dos franciscanos deu-se principalmente a partir das faculdades de Teologia das universidades de Oxford, Paris e Colônia.

Na universidade de Paris, modelo para muitas outras, distinguiram-se primeiramente Alexandre de Hales, o fundador da chamada Escola Franciscana, depois Bonaventura de Bagnoreggio, ministro-geral da Ordem e cardeal, em seguida seus discípulos Mateus de Aquasparta e Petrus Olivi, e finalmente João Duns Scotus. Em Oxford marcaram época Roberto de Grosseteste, Thomas de York (depois em Cambridge), Roger Bacon, o mesmo João Duns Scotus e mais tarde Guilherme de Ockham. Não desejo entrar aqui em mais detalhes, pois é justamente sobre João Duns Scotus, a escola franciscana e a escola tomista que tratarão as demais contribuições.

Para terminar esta exposição introdutória aos trabalhos do nosso colóquio, gostaria de sublinhar o fato de que foi neste século XIII que a especulação teológica, o pensamento filosófico e político e a discussão sobre o método científico, deram uma arrancada formidável rumo ao que mais tarde se chamará “modernidade”.

Questões novas, científicas, políticas, filosóficas e religiosas, foram colocadas ao espírito humano, de forma análoga aos grandes desafios que hoje a dita “pós-modernidade” – mais propriamente a globalização do capitalismo – nos propõe. A metafísica escolástica, com suas summas teológicas e disputationes entre letrados pode até confundir e cansar os modernos pela massa dos detalhes e pelas filigranas da argumentação especulativa.

Na época, no entanto, tais obras foram escritas e trabalhadas com densidade existencial, como resposta a questões da vida e da fé. Mais do que a defesa de uma visão de mundo, que também estava em jogo, por exemplo, entre anselmianos e escotistas, ou uma metodologia de como obter conhecimento científico, também em jogo nas abordagens de Roger Bacon e Duns Scotus de um lado e Tomás de Aquino por outro lado, mais do que isso, talvez devêssemos atentar para aqueles elementos subterrâneos, para aquelas intuições criativas e geniais, às vezes subversivas, dos grandes pensadores franciscanos, como Duns Scotus e Guilherme de Ockham, que nos podem inspirar e ajudar no enfrentamento da nossa própria realidade e no nosso próprio esforço de conhecer.

NOTAS

1 Cf. LE GOFF, Jacques. La baja Edad Media. Madrid-México: Siglo Veintiuno 1972. (Historia
Universal Siglo XXI vol.11).
2 Cf. LE GOFF, idem p. 206.
3 Cf. LE GOFF, op. cit. p. 204.
4 Cf. JEDIN, H. (Org.). Handbuch der Kirchengeschichte. Vol. III/2, Die Mittelalterliche Kirche: Vom
Hochmittelalter bis zum Vorabend der Reformation. Freiburg: Herder 1985, p.318ss.
5 Cf. LE GOFF, op. Cit., p. 246ss.
6 Cf. LE GOFF, idem p. 239.
7 Idem, p. 241.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Aula da Saudade

Senhores Professores
Senhores Pais
Senhores e Senhoras
Caríssimos concludentes.
Aula da Saudade proferida na conclusão da primeira turma de Direito do CEST.

Não nego o quanto me comove este momento, porque se trata de uma aula diferente da formalmente proferida – é uma aula da saudade.

Portanto esta aula não só cumpre uma tradição na vida acadêmica, como efetiva com certeza o rompimento do elo existente entre o professor e o aluno, o aluno e o curso de Direito, tempo e espaço que não mais de repetirão em nossas caminhadas.

Hoje vocês deixam de ser turma para ser Valdir, Alessandra e Marina. De hoje em diante a noção de turma é o próprio sentido que a Faculdade Santa Terezinha – CEST – conferiu a vida de vocês, e ao longo desses anos,estará guardado para sempre na memória de cada um.

E esta memória ficará adormecida até o momento em que a saudade provocar a inquietação da lembrança.

A saudade é a celebração de um conjunto de valores que enobrecerá a cada um, que relação aquilo que vocês mesmo construíram.

Sentir saudade é reviver a academia em forma de aprendizado, pois saudade é acima de tudo, o resultado de uma experiência.

A saudade nos faz refletir e, sobretudo, sentir com mais vigor a presença de uma ausência.

Podemos comparar a saudade como uma máquina do tempo, pois nos possibilita navegar no tempo, o tempo que quisermo.

Esta aula nos faz relembrar um longo e agradável convívio, aqui alimentado durante um período do de cinco anos e que, agora, exigência de circunstâncias profissionais de cada um, nos proporciona uma despedida.

E como toda despedida, entre os que sinceramente se estimam e consideram, é difícil para quem parte e sem sombra de dúvida se torna angustiante para quem fica.

Em tempo bem próximo todos vocês estarão envolvidos e empenhados na busca de realização pessoal e jovens como são, logo a saudade será diluída, levada principalmente pelos compromissos profissionais a serem assumidos.

E invoco para que sintam saudade, pois ela é, de agora por diante o elo que os manterá presente, embora ausentes desde espaço acadêmico.

Assim, quando o momento exigir conhecimento em: Sociologia, Direito Constitucional, Penal, Civil, Tributário, Trabalho, etc, a saudade vai fazer lembrar as aulas dos professores que tiveram.

Mas essa saudade só trará aquilo que cada um dar a si mesmo. Nesse sentido lembrarar, até o perfil de cada professor – aquele atencioso; o descontraído; o que tinha mania de limpeza nas provas; o mais chato; o que não gostava de ministrar aula e por aí afora.

Lembrarão os colegas,aqueles esforçados; os que pouco assistiam aulas; os que gostavam da pesca; os que não faziam os trabalhos de equipe mas colocava sua assinatura; o CDF etc.

Recordarão a ansiedade dos primeiros períodos, as dificuldades nas disciplinas iniciais, o longo percurso como desbravadores da primeira turma do curso de Direito na Instituição, enfrentando todos os obstáculos surgidos, até mesmo os experimentais, abrindo a vereda para as turmas subseqüentes e finalmente, o íntimo e amigável convívio nos estudos do Direito.

A saudade é um bem particular cheio de sentido coletivo.

A saudade indiscutivelmente está sempre voltada para o passado e como dizia Rui Barbosa os moços não tem passado, mas somente o futuro. Por essa razão é que ser jovem é viver de esperança.

Assim, asseverou o poeta Julio Dantas:

“Olhemos para traz, lembremos-nos da vida.
A saudade do que foi é uma estada florida”

Pois meus queridos formandos como poderia falar de saudade sem buscar guarida nos poetas? Quem melhor que eles, poderia traduzir este sentimento?

Entendo necessário escutar Bastos Tigre, sobre saudade – ouçamo-lo:

Saudade – palavra doce,
Que traduz tango amargor,
Saudade – é como se fosse
Espinho cheirando a flor.

Saudade – ventura ausente,
Um bem que longe se vê,
Uma dor que o peito sente,
Sem saber como e porquê.

Um desejo de estar perto,
De quem está longe de nós;
Um ai, que não sei ao certo
Se é um suspiro ou uma voz.

U sorriso de tristeza,
Um soluço de alegria,
O suplício da incerteza
Que uma esperança alivia.

Nessas três sílabas há de
Caber toda uma canção,
Bendita a dor da saudade
Que faz bem ao coração.


Um longo olhar que se lança
Numa carta ou numa flor;
Saudade, irmã da esperança,
Saudade, filha do amor.

Uma palavra tão breve,
Mas tão longe de sentir!
E há tanta gente que há escreve
E a não saber traduzir.

Gosto amargo de infelizes
Foi como a chamou Garret;
Coração calado, dizes
Num suspiro o que ela é.

A palavra é bem pequena,
Mas diz tanto, de uma vez!
Por ela valeu a pena
Inventar-se o português

Saudade – um suspiro, uma ânsia,
Uma vontade de ver
A quem nos vê, a distância,
Com olhos de bem querer.

A saudade é calculada,
Por algarismo também:
Distância multiplicada,
Pelo fator – querer bem.

A alma gela-se de tédio,
Enchem-se os olhos de ardor.
Saudade – dor que é remédio
Remédio que aumenta a dor!.


Vazio e sem menor sentido seria o nosso trabalho, se aqui fossemos pensar, refletir sobre a saudade, procurando-lhe sentido racional.

Esta via do saber voces fizeram ao longo do curso, e em procedendo dessa forma, estaríamos, com certeza, esvaziando o seu conteúdo efetivo, porque saudade não é para ser pensada, mas sentida.

Saudade pertence ao contexto dos sentimentos, ao recôndito do coração, e não ao universo da razão, da inteligência.

A partir de agora a saudade, ao longo dos anos, fará indiscutivelmente, hospedagem no coração de cada um de voces e a acompanhará por toda a vida.

Agora, com certeza, terão saudade da vida acadêmica, dos estudos, das pesquisas, das provas, das salas de aulas, dos professores, das amizades estreitadas.

Amanhã, um novo dia, um novo horizonte, então, quando a construção afetiva estiver enriquecida de tantas saudades, será agradável recordar.

É natural que nossos costumes racionalistas colocam obstáculos, quase sempre, de aceitar as verdades do coração ou a verdade afetiva, uma como adequação dos nossos sentimentos justamente nas coisas que nos afetam e que nos sensibilizam.

De certo são como duas paralelas ( o racional e o afetivo) dentro do nosso universo interior. E simplesmente não podemos a prima facae, afirmar qual dos das duas ( se a da inteligência ou dos sentimentos) é o mas verdadeira.

Se estes dois mundo por acaso se opõem, fica criado o dilema – se vamos seguir os ditames da inteligência ou a trilha do sentimento?.

São duas vias diferentes e que nos levam a mundos diferentes: um conquistado pela razão; outro, afetivo, que nos amarra as nossas origens.

Durante os anos que voces percorreram os corredores do CEST e do Direito incessantemente, a verdade e a Justiça, múltipla e fugidia, a concorrência complexa dos diferentes pontos de vista de cada Professor, uma verdade construída pelas pessoas, que faz remontar o primórdios da cultura clássica, quando, por exemplo, Pitágoras afirmava que o “homem era medida de todas as cousas

É evidente, o conhecimento da ciência do Direito sempre como produção do homem; portanto revisível e perfectível: interpreta hoje e agora uma realidade, que será reinterpretada melhor amanhã.

Assim, não podemos fugir a essa determinante fatalidade: a da relatividade dos nossos conhecimentos e da efemeridade de nossas construções científicas.

É irrefutável o fato de que as verdades estabelecidas mudam ao longo do tempo e do espaço; a verdade de hoje foi posta em questionamento, ou a heresia, de ontem e, amanhã; será nossa imperdoável ignorância.

O jurista principalmente, precisa ter sempre presente na consciência a fragilidade do que é o homem e do que individualmente pode; somente o esforço compartilhado por todos, por meio de sucessivas gerações de pensadores, conseguiu elevá-lo ao status de cultua de que ora se presencia.

O conhecimento independente de qualquer refutação é produção social: em que o indivíduo acumula e sistematiza os dados pretéritos e repassa as gerações mais jovens o seu contributo.

Originariamente é o homem individuado como ser gregário levado pela própria fragilidade, a conviver ao lado do seu semelhante: a convivência lhe é um imperativo natural; não teria condições de sobreviver, senão convivendo, solidarizando-se com os demais homens contra as intempéries comuns.

Não se pode negar que toda convivência exige um disciplinarmente, que não se coloca apenas extrinsecamente, ou seja, de fora para dentro, mas também intrinsecamente, como maneira interior e necessária da própria convivência.

Vê-se, portanto, a raiz dos disciplinamentos sociais, dentre eles sobressaem os de ordem moral e jurídica, cujo a análise voces terminaram de efetivar com a passagem da potencialidade ao ato, alcançando assim, o gáudio com a conclusão do curso de Filosofia e Direito.

Desnecessário mostrar a voces a importância do Direito. Entretanto não custa lembrar-lhes que o problema jurídico é o problema humano por excelência: dele queiramos ou não todos dependemos, sem ele o existencial se torna vazio.

A ciência renovam o pensamento – as idéias, as crenças, as teorias, como o Direito renova a conduta social.

Tudo isto ocorre dentro do contexto da dinamicidade, da crítica da realidade posta, como alguma coisa em processo de devenir, ao novo conhecimento negando, dialeticamente, o conhecimento pretérito, como o novo Direito será a negação do velho Direito.

Negação esta, que é na verdade, uma superação e, por via de conseqüência, um aperfeiçoamento do processo jurídico do ajustamento social.

A função dos sistemas jurídicos, que são sistemas lógicos, é a de demonstrar realidades da vida, buscando a harmonização e adaptação do homem a vida social, numa incessante luta de ajustar interesses individuais e coletivos.

Senhores concludente.

Vivenciamos hoje um momento bastante significativo na vida política e democrática do Brasil em que se misturam dúvidas, incertezas e esperanças, mas um consolo acalma a todos, é o da concepção que o povo é o senhor das decisões democráticas e sem democracia não há liberdade efetiva, principalmente se não estiver assentada uma ordem política ética e uma ordem jurídica legitima.

Assim, asseverara Rui Barbosa em sua obra a “dialética iluminada dos convencidos e reformadores”:

"As constituições são conseqüências das irresistíveis evolução econômica do mundo. As nossas constituições tem ainda por norma as declarações de direitos consagradas no século XVIII. Suas formulas já não correspondem exatamente à consciência jurídica do universo. A inflexibilidade individual dessas cartas, imortais, mas não imutáveis, alguma cousa tem de ceder ao sopro da socialização que agita o mundo”.

Senhores concludentes.

O momento politico-social-jurídico está a exigir de cada um de nós uma atitude profissional deôntica, principalmente na administração pública, no sentido de consolidar e elidir os intercorrente desajustamentos, econômicos, sociais e morais, conseqüentes de uma desvaloração da pessoa, com propósitos direcionados de coisificá-la.

É necessário um nivelamento das condições sociais a fim de evitar o fosso cada vez maior entre pobres e ricos e amenizar as injustiças e assegurar os princípios fundamentais consagradas na constituição.

Aqui não se trata de uma pobreza evangélica, mas antievangélica, que é sinônimo de exploração, de opressão, de situação desumana. Trata-se da pobreza de dimensão sócio-politico-moral e jurídica, isto é, generalizada e estrutural.

O profissional da ciência Jurídica não pode fazer desta realidade ouvido de mercador, porque está a ferir de morte o juramento profissional assumido.

Temos acima de qualquer cousa uma responsabilidade comunitária, a esperar por cada um dos senhores e senhoras, uma resposta efetiva e regada de esperança. Não podemos deixar de responder a aqueles que precisam do nosso socorro profissional.

Nessa linha de raciocínio busco achegas nos ensinamentos do Pe. Antonio Vieira Ravasco, quando assim afirmou:

“É coisa tão natural o responder , que até os penhascos duros respondem, e, para as vozes têm ecos. Pelo contrário é tão grande violência não responder, que os que nasceram mudos fez a natureza também surdos, porque se ouvissem e não pudessem responder, rebentariam de dor

O não responder, também, em matéria de direito processual gera tão “grande violência” que resulta não só na revelia, mas num cenário de prejuízos a parte e a conseqüência de ser admitida como verdadeiro o que foi aduzido faticamente pelo autor.

O operário do Direito não pode esquecer que a reciclagem nos estudos é condição sine qua non para atualização dos conhecimentos e evitar que se venha desfazer no tempo o que foi aprendido porque a meta teleológica a Justiça.

E como afirmara Eduardo Contoure, jurista uruguaio, em seu decálogo do Advogado, universalmente conhecido, no artigo 4 que: quando o direito se confrontar com a justiça lute por esta.

Sem o aprimoramento devido da inteligência, com certeza nos leva a um retrocesso intelectual, ao ponte de não se poder distinguir o que é ignorância e o que é erro.
Volto assim, a exemplificar mais uma vez, o Pe. Viera, quando faz referência a cura do cego em Betsaída:

“Pôs o Senhor a mão nos olhos a este cego, e perguntou-lhe se via. Olhou ele, e disse: Video hominis, velut arbores ambulantes. Senhor, vejo os homens como árvores que andam de uma parte a outra”.

Conclui-se que: quando o cego passou a ver os homens como árvores estava mais cego do que quando nada via. Portanto, a cegueira mais grave não é a de não saber da justiça, mas a de não querer vê-la.

Senhores, o bom senso me diz que não devo mais tomar-lhes o tempo, entretanto, entendo ser necessário deixar uma recomendação se assim me permitirem.
Amanhã estarão trilhando por novos caminhos, após a colação de grau. Alguns estarão em sala de aula, direção de colégios, juizes, promotores, advogados e na administração pública.

Por onde estiverem, encontrarão com certeza, no exercício da profissão a passagem por duras provas. Não tenha o menor receio em afirmar que voces as vencerão com grandeza, principalmente se cultivarem as virtudes, sem menosprezo das demais, da coragem, honestidade e competência.

Sem a coragem para quando necessário e oportuno, contrariar interesses, ignorar conveniência pessoais, para se contrapor aos fortes, para não ceder as injunções políticas, de nada valerá a honestidade e a competência.

Esta, mais que em qualquer outro, não pode faltar no magistrado. O que seria dos direitos dos menos afortunados e desprovidos de recursos se não fosse o destemor moral do Juiz.

Rui Barbosa em mais uma feliz passagem afirmara:

“O bom ladrão salvou-se, mas não há salvação para o juiz covarde”.

Portanto meus caros concludentes, livrai-vos da desonestidade profissional que tanto tem desarticulado os alicerces do relevante papel da justiça social e moral.

Se não foram aplaudidos mas terão a íntima satisfação não haverem traído a suas convicções, maculada a suas dignidade e traído os seus ideais.

Creio que está esgotado o tempo de nossa aula. Só me reta então, vê-los partir na caminhada de novos horizontes.

E como professor fico a guardar no coração a saudade da convivência de vários anos e levo comigo a doce ilusão de que amanhã, as salas de aula estarão iluminadas com o calor da inteligência aqui deixado por cada um de voces.

Portanto, em nome da saudade desejo a todos um forte abraço de saudade.

Obrigado.