quinta-feira, 9 de agosto de 2007

A Universidade e os Franciuscanos - Sec. XIII


AS UNIVERSIDADES E OS FRANCISCANOS NO SÉCULO XIII
Professor Castro

Segundo muitos historiadores, o século XIII pode ser considerado o auge da Idade Média. Neste século que vai, segundo Le Goff, de 1180 a 1270, a sociedade européia, estava mais estruturada e equilibrada, o sistema feudal mais estável do que nos séculos precedentes. O poder público se consolida às expensas do poder senhorial da nobreza tradicional; a sociedade urbana se estratifica sempre mais em patriciado, corporações e pobres, criando uma elite patronal e política sobre artesãos e trabalhadores. A burguesia das corporações forma a espinha dorsal da sociedade urbana, comandada pelas poucas famílias do patriciado, geralmente composto de grandes mercadores. A existência de um sem-número de ofícios e profissões atesta a já acentuada divisão do trabalho social.

Além do crescimento demográfico de 61 para 73 milhões de habitantes entre 1200 e 1300, a Europa conhece uma fase de prosperidade econômica, devido sobretudo à prosperidade rural. A fome retrocede com o aumento das superfícies cultivadas e da produtividade e com o comércio internacional emergente. Também nesta fase são introduzidas importantes inovações tecnológicas: no campo, o emprego do arado a cavalo, dos moinhos a água e de novas técnicas de cultivo; nas cidades, dá-se um grande avanço na indústria têxtil pelo emprego do tear horizontal, do pisão e dos tornos de fiar.

A Europa, que antes importava do Oriente, passa a confeccionar tecidos de luxo e semi-luxo, muito cobiçados pela nobreza e a burguesia. As grandes construções góticas exigem a invenção de novos instrumentos e técnicas, depois aplicados em outros setores da vida social. Do ponto de vista do comércio, os negócios conhecem um verdadeiro apogeu, possibilitado pelo estabelecimento de novas rotas comerciais, pela criação das grandes feiras nos centros comerciais e pela especialização das regiões produtoras. Empurrada pelo comércio e a atividade cambial, dá-se a expansão da economia monetária. Há um grande aumento de moedas de prata e ouro em circulação e o dinheiro se consolida como equivalente universal. Por outro lado, por causa dos empréstimos contraídos, os camponeses se endividam de forma crescente. Do ponto de vista da arte, as catedrais góticas atingem seu esplendor, revolucionando a arquitetura românica. Do ponto de vista político, este é o século do poder monárquico da Igreja, da autoridade absoluta dos papas, modelo do posterior triunfo monárquico absolutista. Mas isto não acontece sem resistências e contestação: surgem os movimentos pauperísticos, milenaristas e heréticos. O papa convoca uma cruzada contra cátaros e albigenses na França e cria a Inquisição pontifícia, impondo o medo e enchendo as prisões com a ajuda do poder público que lhe era submisso.
Apesar disso, em termos da cultura intelectual e espiritual da Idade Média, o século XIII também representa um ponto alto. Neste período se dá a organização do patrimônio intelectual e artístico da sociedade européia. Gostaria de apontar, citando Hans Wolter, para três elementos que contribuíram sobremaneira para o enriquecimento da cultura, das artes e da ciência: Primeiro, a redescoberta e o estudo das obras do aristotelismo através da tradução, do comentário e da incorporação da filosofia grega na filosofia e na teologia cristãs. Devemos nos lembrar que, por muitos séculos, as grandes obras de diversos filósofos gregos, sobretudo Aristóteles, se tornaram desconhecidas ou não eram acessíveis aos pensadores do Ocidente. Apenas os escritos de Platão, e assim mesmo através da interpretação da escola neoplatônica de Plotino e Boécio, eram lidos e trabalhados, influenciando de forma decisiva, por exemplo, o pensamento de Santo Agostinho. Quando as grandes obras de Aristóteles, o Organon, a Metafísica, a Ética, a Política e os chamados “libri naturales” foram traduzidas para o latim, foi um alvoroço geral, uma verdadeira ebulição intelectual nos centros de estudo europeus. Para isto, contribuíram de forma decisiva os embates teóricos com os comentadores e sábios árabes e judeus e, após 1260, também diretamente com os gregos.

Em segundo lugar, caracteriza o séc. XIII a rápida expansão e consolidação das Universidades, sobretudo as universidades de Bolonha, Paris, Oxford e Cambridge, as três últimas com uma influência marcante dos franciscanos. Mas além delas surgiram outros centros de estudos em Chartres, Reims, Montpellier e Toulouse na França; Salerno, Pádua e Nápoles na Itália; Toledo, Valência, León e Salamanca na Espanha e Coimbra em Portugal. Com a exceção de Bolonha, a universidade mais antiga, onde estudantes e professores conseguiram por determinado tempo uma autonomia frente ao governo da cidade e frente à jurisdição do bispo, todas as outras, mesmo possuindo estatutos próprios, estavam de alguma forma dependentes do protetorado do rei ou do papa, ou de ambos. Por isso o que se passava nas universidades e o que era ensinado não era indiferente a esses “protetores”. Freqüentemente intervinham rei, príncipe ou o papa para influenciar e tentar controlar professores e alunos e as teorias que produziam. Algumas vezes intervinham para defender a “corporação universitária” da tentativa de controle por parte da instância adversária. A vida nestas universidades se passava quase sempre no espaço eclesial, uma vez que quase todos os estudantes eram religiosos ou clérigos. Professores e discípulos moravam próximos, formando verdadeiras comunidades e corporações de vida e estudo. Em Paris, que logo se tornou ponto de referência para as demais, existiam quatro faculdades: Teologia, Medicina, Artes Liberais (formação de base – Filosofia) e o Decretum ou Direito Canônico. Outras universidades incluíam ou se concentravam no Direito Civil, como Bolonha. Normalmente era preciso passar seis anos na faculdade de Artes e também seis nas faculdades de Medicina e Direito. Em Paris a faculdade de Teologia demorava oito anos e exigia dos candidatos ao doutorado a idade mínima de 35 anos. Cada universidade tinha seu escudo, símbolo de sua “liberdade”, e seus estatutos, que lhes garantiam diversos privilégios, como autonomia jurisdicional e o monopólio na concessão de graus universitários. Portanto, apenas uma pequena elite intelectual e social, em geral ligada à Igreja e aos círculos da administração, tinha acesso à educação superior na época.

O nome “universitas” (surgido em 1219 em Bolonha) tinha a ver com a totalidade, com o universo de corporações de mestres e alunos que compunham a universidade. A universidade surge com um caráter marcadamente internacional: tanto alunos como professores provinham de diversas regiões e países e às vezes circulavam entre universidades da França, Alemanha e Inglaterra. Além disso, a designação “universitas” sugeria a tentativa de organizar e trabalhar a universalidade do conhecimento humano. Um particular interesse é que as universidades nascentes já sofriam com a falta de dinheiro e financiamento, com o número insuficiente de salas de aula e de moradia para os seus membros. O número de estudantes nas maiores escolas atingia a casa dos milhares. Em Paris, o ensino de Teologia e Artes era gratuito, mas as faculdades de Direito e de Medicina cobravam taxas, sobretudo por ocasião dos exames. Os exames eram fundamentais para se conceder a licentia docendi, a permissão para lecionar, sem a qual nenhum formando podia tornar-se professor. Um método de investigação logo se torna o principal instrumento teórico dos estudantes e professores: a Escolástica. O raciocínio escolástico clássico passa por quatro momentos: primeiro vem a leitura de um texto (a lectio) que, aliás, logo a seguir é dispensada; depois vem a colocação de um problema (a quaestio); em terceiro vem a discussão e o debate em torno da questão (a disputatio), que constitui o ponto alto de todo o método; por último, vinha a solução do problema (a determinatio), fruto de uma decisão intelectual do mestre.

Com tudo isso, foi nas universidades do século XIII que se desenvolveu a vida intelectual e científica da Europa, foi aí que se cultivou a ciência filosófica e teológica, a Medicina e o estudo do Direito romano e canônico. Foi justamente neste espaço universitário, que se fez a recepção e a interpretação das obras de diversos pensadores mais antigos, como as Decretais de Graciano ou o Livro das Sentenças de Pedro Lombardo. Mas o estudo logo se concentrou sobre os filósofos gregos, em cujo centro estavam os diversos livros de Aristóteles.

Os centros de estudos de Toledo e Nápoles serviram com ponte de comunicação e interface entre o mundo cristão e a cultura árabe. Foi através das traduções do sírio e do árabe que o legado da filosofia grega atingiu o Ocidente, sobretudo através das obras dos filósofos árabes Alfarabi, Avicena, Averróis e dos filósofos judeus Avicebron e Moisés Maimônides. Em Nápoles e Toledo trabalhavam juntos tradutores e pensadores judeus, árabes e cristãos, numa forma de tolerância que a Inquisição e os períodos seguintes não mais iriam permitir.
Em terceiro lugar contribuiu para o apogeu da cultura e da ciência neste século XIII, sem dúvida alguma, o aparecimento das Ordens Medicantes, franciscanos e dominicanos. Em vez de instalar-se no campo ou nos ermos, os frades mendicantes se estabeleceram nas cidades. Deste modo, puderam estar em contacto com os problemas mais agudos da sociedade do século XIII, com as categorias sociais novas do mundo urbano em plena expansão. O elemento italiano, preponderante no princípio entre os franciscanos, tornou-se depois minoritário, ainda que continuasse sendo forte: em 1263 havia, por exemplo, mais de 1100 conventos de menores só na Itália.

As ocupações principais dos mendicantes não eram os ofícios religiosos e nem o trabalho manual (típico dos beneditinos) e sim a pregação e a devoção. Para assegurá-las no meio urbano tiveram que adquirir, em escolas e universidades, uma formação sólida baseada nos novos métodos da Escolástica. Desde cedo ambas as Ordens se dedicaram muito à atividade missionária, enviando frades ao norte da África, à Ucrânia, Pérsia, Mongólia e até à China. Ramon Llull, por volta de 1275, fundou em Miramar, na ilha de Mallorca, um convento de franciscanos que tinham que aprender o árabe, visando a tarefa missionária entre os muçulmanos. Como se sabe, São Francisco esteve pessoalmente na Terra Santa em missão de pregação pacífica, e a Ordem conseguiu do sultão o direito e o privilégio de cuidar dos lugares santos.
Por volta da metade do século XIII, franciscanos e dominicanos se estabeleceram nas imediações das grandes universidades de Paris, Oxford e Cambridge e influenciaram de forma decisiva o desenvolvimento das ciências e da cultura, sobretudo nos rumos tomados pela filosofia, pela teologia e pela epistemologia. A influência dos franciscanos deu-se principalmente a partir das faculdades de Teologia das universidades de Oxford, Paris e Colônia. Na universidade de Paris, modelo para muitas outras, distinguiram-se primeiramente Alexandre de Hales, o fundador da chamada Escola Franciscana, depois Bonaventura de Bagnoreggio, ministro-geral da Ordem e cardeal, em seguida seus discípulos Mateus de Aquasparta e Petrus Olivi, e finalmente João Duns Scotus. Em Oxford marcaram época Roberto de Grosseteste, Thomas de York (depois em Cambridge), Roger Bacon, o mesmo João Duns Scotus e mais tarde Guilherme de Ockham. Não desejo entrar aqui em mais detalhes, pois é justamente sobre João Duns Scotus, a escola franciscana e a escola tomista que tratarão as demais contribuições.

Para terminar esta exposição introdutória aos trabalhos do nosso colóquio, gostaria de sublinhar o fato de que foi neste século XIII que a especulação teológica, o pensamento filosófico e político e a discussão sobre o método científico, deram uma arrancada formidável rumo ao que mais tarde se chamará “modernidade”. Questões novas, científicas, políticas, filosóficas e religiosas, foram colocadas ao espírito humano, de forma análoga aos grandes desafios que hoje a dita “pós-modernidade” – mais propriamente a globalização do capitalismo – nos propõe. A metafísica escolástica, com suas summas teológicas e disputationes entre letrados pode até confundir e cansar os modernos pela massa dos detalhes e pelas filigranas da argumentação especulativa. Na época, no entanto, tais obras foram escritas e trabalhadas com densidade existencial, como resposta a questões da vida e da fé. Mais do que a defesa de uma visão de mundo, que também estava em jogo, por exemplo, entre anselmianos e escotistas, ou uma metodologia de como obter conhecimento científico, também em jogo nas abordagens de Roger Bacon e Duns Scotus de um lado e Tomás de Aquino por outro lado, mais do que isso, talvez devêssemos atentar para aqueles elementos subterrâneos, para aquelas intuições criativas e geniais, às vezes subversivas, dos grandes pensadores franciscanos, como Duns Scotus e Guilherme de Ockham, que nos podem inspirar e ajudar no enfrentamento da nossa própria realidade e no nosso próprio esforço de conhecer.
NOTAS

1 Cf. LE GOFF, Jacques. La baja Edad Media. Madrid-México: Siglo Veintiuno 1972. (Historia
Universal Siglo XXI vol.11).
2 Cf. LE GOFF, idem p. 206.
3 Cf. LE GOFF, op. cit. p. 204.
4 Cf. JEDIN, H. (Org.). Handbuch der Kirchengeschichte. Vol. III/2, Die Mittelalterliche Kirche: Vom
Hochmittelalter bis zum Vorabend der Reformation. Freiburg: Herder 1985, p.318ss.
5 Cf. LE GOFF, op. Cit., p. 246ss.
6 Cf. LE GOFF, idem p. 239.
7 Idem, p. 241.

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